Pasado Abierto. Revista del CEHis. Nº9. Mar del Plata. Enero-junio 2019.
ISSN Nº2451-6961. http://fh.mdp.edu.ar/revistas/index.php/pasadoabierto
A construção de uma comunidade sensível: corpo, afeto e emoção nos escritos de Guigo I (Grande Cartuxa, 1109-1136)
Gabriel Castanho
Instituto de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
gabriel.castanho@historia.ufrj.br
Recibido: 09/03/2019
Aceptado: 11/06/2019
Resumen
A preocupação com a separação do mundo era constante nos escritos dos primeiros cartuxos. Dentre eles, Guigo I (1083?-1136), quinto prior da casa, foi um dos mais ativos e marcou o propositum cartuxo. Contudo esse isolamento não significou a ausência de reflexão sobre a vida nesse mundo. Nesse sentido, pretendemos demonstrar que, para Guigo, a transferência da topografia mundana para a topografia espiritual do isolamento dependeu, em boa medida, do corpo e de suas sensibilidades. Para tanto, após um breve balanço sobre os estudos das emoções, veremos como tensões sociais podem convergir para o corpo humano; em seguida, uma breve sumarização do pensamento cristão sobre as sensibilidades nos permitirá entrever as implicações eclesiológicas do controle das emoções; por fim, por meio de um estudo do campo semântico dos afetos nos textos de Guigo, perceberemos o papel da quietude na formação da comunidade (emotiva) cartuxa.
Palabras clave: sensibilidades, semântica, cartuxos, eclesiologia, Idade Média
The construction of a sensitive community: body, affection and emotion in the writings of Guigo I (Grande Chartreuse, 1109-1136)
Abstract
Withdrawal from the world was a constant concern in the writings of the first Carthusians. However, they still reflected on how one should live in this world. Guigo I (1083? -1136), fifth prior of the house, produced a number of texts on the matter. In this article, we intend to demonstrate that, for Guigo, the shift of the mundane topography to the spiritual topography of isolation depended, to a great extent, on the body and its sensibility. To do so, after a brief examination of the study of emotions, we will see how social tensions can converge on the human body; then a brief summary of the Christian thinking on sensibilities will allow us to glimpse on the ecclesiological implications of the control of emotions; finally, through a study of the semantic field of affections in the texts of Guigo, we will perceive the role of quietude on the formation of the Carthusian (emotional) community.
Keywords: Sensibility, Semantics, Carthusian, Ecclesiology, Middle Ages
A construção de uma comunidade sensível: corpo, afeto e emoção nos escritos de Guigo I (Grande Cartuxa, 1109-1136)
- História e Sensibilidade
A sensibilidade não é um objeto novo entre os historiadores. Uma breve busca por obras versando sobre o passado do amor ou do corpo em catálogos de bibliotecas nacionais oferecerá um belo exemplo de como há muitas décadas os historiadores se debruçam sobre tais objetos. Contudo, enquanto profissionais do estudo de mulheres e homens no tempo, sabemos que as continuidades históricas se articulam sempre a rupturas, produzindo um ritmo sincopado e marcado ora por um dos elementos, ora por outro, sem nunca completamente silenciá-los. Nesse sentido, a questão chave a ser colocada pelos historiadores diz respeito às definições historiográficas, às concepções de época e aos usos em geral das sensibilidades e dos corpos pelos agentes históricos ao longo do tempo. É nesse campo de estudos que o presente artigo pretende se inserir.
Sensibilidade e emoção
“Vós rides hoje. Durante mil anos não se riu. Chorou-se amargamente” (Michelet, 1966 [1862]: 68)[1]. Há pouco mais de um século e meio, Jules Michelet pintava com a cor viva das emoções[2] todo um período da história ocidental: a Idade Média estaria a tal ponto mergulhada na tristeza que teria, simplesmente, desconhecido a alegria. As emoções definiriam uma época em oposição à outra. Para além de certa retórica romântica de sua época, o texto de Michelet figura como um exemplo da atenção dada às emoções por parte dos historiadores. Seu ofício, entendido como a busca pela síntese explicativa (extraída da documentação de época) que permite destacar no fluxo do tempo as mudanças históricas, levaria os especialistas do passado não apenas a uma descrição dos fatos, mas, sobretudo, ao âmago da experiência humana: os sentimentos. Por meio deles o conhecimento do passado se tornaria mais vivo e, por isso mesmo, mais verdadeiro.
Quase oito décadas depois, Marc Bloch em obra que viria a fundar toda uma nova historiografia da Sociedade Feudal dedicou um capítulo às “Maneiras de Sentir e de Pensar”. No argumento do livro, esse capítulo foi o responsável pela passagem do estudo das “Condições Materiais e a Tonalidade Econômica” à “Memória Coletiva”, que, a seu ver, formavam um todo entendido como sendo “As Condições de Vida e a Atmosfera mental” (Bloch, 1982 [1939]). Marcado por um viés difuso no mundo acadêmico dos anos 30 do século XX (manifestado, por exemplo, no Processo Civilizador de Norbert Elias – de resto, curiosamente não citado por Bloch) que poderíamos chamar de “psicologizante”, a abordagem de Bloch ajudou a cristalizar na historiografia certa visão evolucionista das emoções (Elias, 2014 [1939]; Bloch, 1982 [1939]). De fato, disse o renomado medievalista:
“Finalmente, como se podem negligenciar os efeitos da espantosa sensibilidade às manifestações pretensamente sobrenaturais? Ela tornava os espíritos constantemente e quase doentiamente atentos a toda a espécie de presságios, de sonhos, de alucinações. Esta particularidade era sobretudo intensa nos meios monásticos, onde as macerações e o recalcamento acrescentavam a sua influência à de uma reflexão profissionalmente centralizada sobre os problemas do invisível. Nenhum psicanalista jamais perscrutou os seus sonhos com mais ardor do que os monges do X ou do XI século. No entanto, os leigos participavam igualmente da emotividade de uma civilização onde o código moral ou mundano não impunha ainda às pessoas bem-educadas que reprimissem as lágrimas e os seus ‘desmaios’. Os desesperos, os furores, as decisões repentinas, as bruscas mudanças de atitude, apresentam grandes dificuldades aos historiadores, levados por instinto a reconstruir o passado segundo as diretrizes da inteligência; elementos consideráveis de toda a história, sem dúvida, eles exerceram, sobre o desenrolar dos acontecimentos políticos na Europa feudal, uma ação que não poderia deixar de mencionar-se, a não ser por uma espécie de pudor inútil”. (Bloch, 1982 [1939]: 91)
Se passagens como essa possuem o grande mérito de insistir na importância fundamental do estudo histórico das emoções para uma melhor compreensão das sociedades passadas, elas também acabam por trazer para a mesa de trabalho do historiador um pressuposto que será duramente criticado pela antropologia ao longo da segunda metade do século passado: as emoções se opõem a razão e vice-versa. Nesse sentido, seu estudo supunha a existência de processos históricos marcados, teleologicamente, pela afirmação da racionalização individual e coletiva. Tal como toda criança tenderia a se tornar adulta, do mesmo modo, a emotividade medieval tenderia a ser superada pela racionalidade contemporânea, a fim de que as “desordens internas, que de boa vontade qualificaríamos como agitação da adolescência” dessem lugar a uma estabilidade da razão (Bloch, 1982 [1939]: 103)[3].
De certo modo, esse pressuposto subjacente ao pensamento de Bloch nos ajuda a compreender a historicidade dos estudos das emoções: sendo um aspecto universal da experiência humana, a emotividade seria uma marca do “homem primitivo” ou da “infância da humanidade”, ambos anteriores à civilização e a repressão dos instintos naturais. Entramos aqui no campo mais amplo dos estudos das emoções e de suas relações não tanto com o tempo, mas com a ontologia humana. Resumir tal campo de estudos nos levaria a caminhos que nos desviaram dos objetivos traçados para este artigo[4]. No entanto, alguns esclarecimentos se fazem necessários.
Concordando com E. Lindner (2009), podemos dividir em três as linhas gerais de uma abordagem científica das emoções: biológica, cognitiva e construcionista[5]. A primeira delas definiria a emoção como um dado do inconsciente dos indivíduos, algo que escaparia a toda possibilidade de uma racionalidade sistemática; as emoções estariam ligadas a condições biológicas (fisiológicas, mais exatamente) básicas, universais e presentistas (ou seja, não históricas já que todos os seres humanos sentem e sentiram as mesmas emoções que sentimos hoje) experimentadas pelas pessoas e associadas à química corpórea e aos gestos típicos como o sorriso para a alegria, a raiva para o ranger dos dentes, o fechamento dos olhos para o luto etc.[6]. O estudo das emoções deveria, assim, buscar estabelecer e compreender um grupo de emoções básicas muitas vezes identificadas como medo, raiva, aversão, nojo, desejo, esperança, alegria, prazer etc.. Partindo do estudo da relação entre corpo e sentimentos, a abordagem cognitiva localiza a produção das emoções no córtex pré-frontal do cérebro, região também responsável pela elaboração de pensamentos complexos. Dessa maneira, ainda que marcadamente universalista (ou seja, todo ser humano sempre teria sentido e manifestado da mesma maneira as mesmas emoções), essa abordagem passa gradativamente a colocar em questão a crença na oposição completa entre razão e emoção[7]. Por fim, a visão construcionista das emoções, partindo de um princípio próximo ao cognitivista, defende que as emoções são reações conscientes (ou não) das pessoas face ao mundo. Contudo, essa reação funcionaria segundo uma lógica coletiva, contextual e cultural, portanto histórica[8]. É nessa última abordagem que o presente estudo se insere ao defender que as emoções são socialmente construídas ao longo do tempo.
Profundamente influenciada e alimentada pela antropologia e pela sociologia, a abordagem construcionista passou a ser mais amplamente difundida a partir dos anos 1980 com os trabalhos de C. Lutz, G. M. White e L. Abu-Lughod (em especial Lutz et White, 1986 e Abu-Lughod et Lutz, 1990). Em 1986 Lutz e White propuseram um balanço dos estudos sociais das emoções realizados até então, separando-os em cinco binômios fundamentais. O primeiro deles oporia o positivismo (emoção como fato psíquico que causa o social) e “interpretativismo” (emoção como produto da cultura); o segundo seria marcado pelo materialismo (biologia das emoções) e pelo idealismo (emoções ligadas à ética ou a moral coletivas); o terceiro eixo giraria entorno do individuo (locus das emoções) por oposição à sociedade (locus dos padrões culturais coletivos); o quarto oporia romantismo (emoção como essência do ser humano) e racionalismo (emoção como parcela primitiva do ser humano); por fim, e, de certo modo, tencionando todos os demais temos o universalismo contraposto ao relativismo histórico.[9] Por sua vez, quatro anos depois, Lutz e Abu-Lughod introduziram uma reflexão importante e que irá marcar os estudos históricos das emoções a partir de então: influenciado pelos princípios da filosofia do discurso de M. Foucault, o pesquisador das sensibilidades deveria atentar para as expressões emotivas já que ao dizer as emoções os indivíduos e as sociedades produzem um discurso que organiza o mundo. Assim, a verbalização das emoções é tida como um ato, uma ação, uma prática que organiza as próprias emoções e as sociedades que as experimentam enquanto discursos subversivos ou normativos. Nesse sentido, o estudo semântico dos termos deve ser prática comum entre os historiadores das emoções a fim de extrair de sua documentação de época aquilo que é coevamente compreendido como sendo uma emoção, impedindo assim toda projeção emotiva do presente sobre o passado[10].
Um dos mais importantes trabalhos sobre as emoções que, embora com duras críticas, tenha se fundado parcialmente no princípio construcionista das emoções para buscar perceber a historicidade das emoções foi o de W. Reddy (2001)[11]. Em sua obra, Reddy dialogou com a proposição da psicologia cognitiva segundo a qual as emoções e os pensamentos são avaliações do mundo exterior realizadas por indivíduos e coletividades e com a teoria dos atos de fala para, assim, formular seu conceito chave: os “emotivos”. Os emotivos teriam “aparência descritiva, propósito relacional, efeitos auto-exploratórios e auto-transformável (...) são como performativos, no sentido de que fazem algo para o mundo” (Reddy, 2001: 111). Por buscarem realizar algo, não seriam falsos ou verdadeiros (Reddy, 2001: 97), mas seriam “instrumentos para diretamente mudar, construir, esconder, intensificar emoções, instrumentos [que] podem ter mais ou menos sucesso” (Reddy, 2001: 105). Por meio dos emotivos, as sociedades e seus agentes históricos navegam entre aquilo que o autor nomeia como “regimes emotivos” (ou seja, a ordem normativa das emoções muitas vezes próximas da ideologia) e os “refúgios emotivos” (práticas emotivas contra-hegemônicas). Assim, as emoções, por meio dos emotivos, assumem um papel absolutamente capital para os regimes políticos e para as mudanças históricas, objeto central dos historiadores (Reddy, 2001: 55 e 124). É preciso, contudo, destacar que a proposição de compreensão das emoções por meio da imagem da “navegação” lembra bastante a chamada “Emocionologia” de C. Z. Stearns e P. Stearns. Com essa noção os Stearns defendiam, já em 1985, que o historiador conseguiria apenas alcançar a gestão das atitudes ou dos padrões coletivos de emoções básicas e de suas expressões no passado. Assim, as emoções não seriam criadas, mas apenas geridas por instituições responsáveis pela conduta humana em sociedade (Stearns et Stearns, 1985).
O trabalho de Reddy evidencia para os historiadores algo que já era claro para outros estudiosos das emoções: suas ligações profundas com a sociedade e a política[12]. De fato, a partir de então foi o campo da experiência social das emoções que ganhou espaço entre os historiadores. Um dos trabalhos que dialogaram criticamente com a vasta tradição dos estudos das emoções, em especial com a noção de “emotivos” e de “regimes emotivos”, foi o desenvolvido por B. Rosenwein. Buscando colocar a prova alguns conceitos e abordagens visando à produção de um instrumental analítico mais apropriado ao mundo medieval, a renomada estudiosa do monasticismo se propôs a mergulhar em um período de relativa baixa na produção de textos (a Alta Idade Média) para, a partir dela, melhor conhecer a emotividade medieval (Rosenwein, 2006). Criticando abordagens anteriores à luz de sua documentação primária B. Rosenwein propôs que grupos sociais de diferentes naturezas e tamanhos (mais restritos ou mais amplos) sejam estudados por meio da noção de “comunidades emocionais” formadas por “assunções, valores, metas, regras de sentimentos e seus modos adequados de expressão (...) [e possivelmente por] uma comunidade textual” (Rosenwein, 2006: 24 e 25)[13]. A proposição de Rosenwein marcou o fazer historiográfico desde então. Contudo, entre os pesquisadores latino-americanos pode causar estranheza o fato da medievalista que, apesar de suas profundas e sistemáticas incursões em diferentes campos dos estudos das emoções, incluindo ai os realizados pela psicologia, não tenha citado os trabalhos de E. Pichon-Rivière e seus seguidores, em especial a sua noção de “tarefa” ligada ao trabalho psiquiátrico de grupos, que mesmo tendo outros objetivos, oferece uma reflexão próxima a de “comunidades emocionais” por meio da relação entre práticas e metas na organização e no funcionamento social (Pichon-RIvière, 2005 [1975])[14]. De todo modo, essa lacuna não diminui o mérito da reflexão sociológica realizada pela medievalista já que a noção de “comunidades emocionais” atua como ferramenta heurística de grande utilidade para a compreensão das contradições e oposições emotivas existentes entre (e mesmo intra) grupos, pois se articulam
“de certo modo [a] o que Foucault chamou de “discurso” comum: vocabulários compartilhados e maneiras de pensar que possuem função de controle, uma função disciplinadora. Comunidades emocionais são similares também à noção de “habitus” de Bourdieu: normas internalizadas que determinam como nós pensamos e agimos e que pode ser diferente em grupos diferentes” (Rosenwein, 2006: 25).
Em suma, ligadas à realização de metas e ideais sociais, as emoções figuram como forças sociais centrípetas ou centrifugas. Não são meramente sofridas pelas pessoas, mas sim se constituem em práticas ligadas ao agenciamento das sociedades em suas mais diferentes esferas (do micro ao macro). Assim, para o historiador, bem como para todo cientista social, as emoções passadas já não existem em si e por si no âmago dos indivíduos; existem como performance, uma mostra dramática e ritualizada das sensibilidades cuja única existência se torna cognoscível ao pesquisador por meio do corpo, ao mesmo tempo atuante e sofredor das emoções sociais (Rosenwein et Cristiani, 2018: 45 e 49). De fato, é para o corpo que convergem os discursos emotivos. É também para ele que se direcionam as diferentes linhas de estudos históricos das emoções, concentradas em duas abordagens gerais: o corpo fechado e autônomo (biológico) e o corpo poroso (em relação ao mundo exterior e sua atuação nele) (Rosenwein et Cristiani, 2018: 4 e 64). Trata-se, no segundo caso (aquele que mais nos interessa aqui), de conhecer os modos pelos quais os corpos interagem uns com os outros e com as coisas e os espaços por meio dos sentidos, da experiência, do contato sensorial (Rosenwein et Cristiani, 2018: 82).
A emotividade no cristianismo medieval: um esboço geral[15]
“As pessoas treinam a si mesmas para ter sentimentos que estão fundadas em suas crenças. Ao mesmo tempo, sentimentos ajudam a criar, a validar e a manter sistemas de crenças” (Rosenwein, 2006: 196). Em sua obra sobre as comunidades emocionais da Alta Idade Média, B. Rosenwein destacou a estreita ligação entre emotividade e religião:
“O exemplo da Idade Média sugere que valores religiosos, ideias e ensinamentos influenciam fortemente a expressão da emoção. Além disso, os efeitos vão também em outra direção: hábitos de expressão emocional moldam as maneiras pelas quais a religião é experienciada e entendida” (Rosenwein, 2006: 201).
No cristianismo o amor, suas definições e usos, foram definidores da(s) comunidade(s) de fé. Era preciso converter o amor carnal em amor a Deus, produzindo uma elevação desse sentimento relacionada à sua divinização metafórica (Deus é amor). No início da estruturação do monasticismo ocidental, o amor já figurava como uma espécie de cimento social responsável pela ligação entre as pessoas (fieis). Vivendo em grupo, o exercício da amizade e da caridade fomentaria a preservação da virtude do outro, reforçando assim a coesão da comunidade (ecclesia)[16]. Na passagem do século VI para o VII, Gregório Magno consolidou a tendência dos Pais da Igreja, e principalmente, dos primeiros autores monásticos ocidentais ao associar emoções a vícios e virtudes. A partir de então, a psicomaquia se tornou definitivamente um dos focos da reflexão cristã sobre as emoções (Boquet et Nagy, 2018 [2015]). Nesse sentido, o ascetismo monástico passou lenta e gradativamente a figurar como uma forma ideal de controle das emoções fundada no luto e na mortificação, ou seja, no abandono do mundo e, consequentemente, na redução dos movimentos (vale lembrar que o termo “emoção” vem do latim exmovere ou emovere : “mover a partir de”, “deslocar”, “remover”) da carne que afastassem o fiel em relação ao amor divino.
Com o passar dos séculos, a expansão do ideal de caridade para além do claustro alimentou discursos ao mesmo tempo emotivos, sociais e religiosos. Um dos principais expoentes dessa expansão foi Pedro Damião que, ao pretender transformar o mundo em um eremitério, defendia uma reforma da Igreja fundamentada em transformações pessoais baseadas na caritas e na penitência a fim de garantir a unidade da Igreja por meio do amor (Boquet et Nagy, 2018 [2015]: 71-80)[17].
Após o século XII os discursos sobre as emoções revelam mudanças substancias ocorridas no ocidente medieval. A primeira delas foi fruto do sincronismo entre o crescente caráter místico associado às emoções e a humanização da figura de Cristo: ambos estão lastreados por uma valorização da vida afetiva dos seres humanos (Boquet et Nagy, 2018 [2015]: 95). De fato, a chamada Idade Média Central produz aquilo que D. Boquet e P. Nagy chamaram de “impassioning of Christianity”, grosso modo, o processo histórico pelo qual a antropologia da salvação de origem monástica, fundada na afetividade e também na sensibilidade do corpo humano, passa a ganhar o mundo (Boquet et Nagy, 2018 [2015]: 103). Tal mudança na forma como o conjunto da sociedade dizia as emoções se cristalizou a partir do século XII quando o uso do termo affectus deu, gradativamente, espaço a passio (Boquet et Nagy, 2018 [2015]: 19 e 24).
- Entre negação do corpo e organização social
O paradoxo dos séculos XI e XII
Semente e fruto dos movimentos de reformas religiosas dos séculos XI e XII, o desejo de abandono do mundo é um dos fatos socioculturais mais importantes do período. Há décadas historiadores e literatos têm tratado dos fatores que levaram ao aumento dos ideais e das práticas eremíticas no mundo latino naquele momento (Février, 1962; Médiévales, 1995; Vauchez, 2003). Paralelamente a esse franco crescimento da busca pelo isolamento social e geográfico, o mundo medieval passava por mudanças sociais capitais. De fato, a historiografia da segunda metade do século XX até hoje tem dado grande atenção aos processos históricos da formação de comunidade de habitantes e de fortificações, da delimitação de um agrupamento em um “território” e da polarização do espaço a partir do altar através dos conceitos de incastellamento, encelulamento e inecclesiamento, característicos da sociedade feudal em formação (ver em especial Toubert, 1973; Fossier, 1982; Lauwers, 2005; Morsel, 2018).
Por outro lado, poucos trabalhos deram destaque ao estudo aprofundado do aparente paradoxo existente entre a valorização simultânea de discursos e práticas sociais centrífugas (isolamento) e centrípetas (vida comunitária)[18]. No que concerne ao presente artigo, pretendemos demonstrar que tais tensões convergem, elas também, em grande medida, para o corpo por meio de seus usos, representações e sensibilidades. Nesse sentido, o paradoxo se desfaz e dá lugar a uma relação dialética estabelecida entre a negação corpo (mundo material) e sua afirmação por meio da necessidade de pertencimento hic et nunc a Ecclesia, isto é, à comunidade de fé. Essa relação dialética foi uma das características mais importantes do monasticismo ocidental que, ao priorizar a vertente cenobítica pretendia conciliar a vida espiritual e a vida nesse mundo. Um dos grupos que obtiveram grande notoriedade em seu tempo pela forma como equilibraram fuga e vida no século foram os cartuxos, chamados desde muito cedo pelo sumo poder episcopal como “sacer ordo eremiticus Cartusiensis” (Bligny, 1958: 52)[19]. Vejamos com mais detalhes como a forma de vida cartuxa propunha fusionar o eremitismo (espiritual) com a ordenação (institucional) formando, assim, um único corpo social.
Os Cartuxos
Em 1084 Bruno de Colônia (v. 1035-1101) chegou ao maciço da Cartuxa com seis companheiros. Com o apoio de Hugo, bispo de Grenoble, instalaram-se em um fundo de vale localmente conhecido pelo nome de Casalibus. Segundo as palavras de Guigo I (1083?-1136), quinto prior da Grande Cartuxa e grande responsável pela institucionalização do grupo, tratava-se de um lugar “inóspito” e “deserto” flanqueado por montanhas (cujos picos passavam dos 1300 metros de altura) e que dispunha de apenas uma fonte de água (Guigo I, 1889 : 15). O acesso era dificultado ainda mais por um rio e uma garganta rochosa que se situavam no único ponto onde a elevação das montanhas circundantes era mais baixa e poderia proporcionar um acesso direto ao vale. Pela região circulavam, vez ou outra, pastores, habitantes e comerciantes ligados ao vilarejo mais próximo, situado a quatro quilômetros do ermo cartuxo[20]. Tal configuração geográfica era compatível com o desejo de isolamento dos religiosos que buscavam, assim, estabelecer um distanciamento de seus corpos físicos em relação aos demais membros da sociedade. O afastamento implicaria também em uma gestão especifica dos corpos, uma vez que o clima rude e o solo pouco produtivo imporiam forte controle das sensibilidades (Guigo I, 2001b [1984], capítulos 19 e 20)[21].
Em sua empreitada, os primeiros cartuxos contaram com o apoio contínuo de bispos e papas que os ajudaram, literalmente, a construir seu isolamento geográfico. Por meio do estudo dos atos expedidos por essas autoridades podemos perceber claramente a intenção eclesial de se criar, no entorno dos monges, um espaço vazio demograficamente. De fato, dispomos hoje de sete bulas papais que, em um espaço curto de tempo, instituíram, confirmaram e proibiram a construção de novos edifícios no ermo da Grande Cartuxa e mesmo nas proximidades de suas fronteiras (Bligny, 1975).
Às fronteiras geográficas foram somadas outras visando o controle sensorial dos corpos. A arquitetura escolhida pelos primeiros cartuxos diferenciava e distanciava uma em relação à outra a casa baixa (ocupada pelos “conversos” e situada na única abertura ao vale oferecida pelas montanhas) e a casa alta com suas celas individuais (situada no lado oposto do vale e em maior altitude) onde os monges habitavam, trabalhavam e se alimentavam. Tal disposição arquitetônica produz um afastamento cotidiano entre os corpos, tornando o isolamento físico cartuxo em elemento de diferenciação institucional. De fato, os “conversos”, laicos que, a serviço dos monges, atuavam na proteção do isolamento, se ocupavam tanto do controle do acesso e da circulação no e para o ermo, quanto da produção agrícola, pastoril e artesanal.
Em suas celas individuais os monges possuíam oficinas equipadas para a produção de manuscritos. Diferente de outros mosteiros de sua época, a Grande Cartuxa não dispunha de uma sala comum dedicada à produção escrita (Guigo I, 2001b [1984], capítulo 28). Assim, ao retirarem o dormitório e o scriptorium coletivos de seu plano arquitetônico, os cartuxos abandonavam três momentos cotidianos de contatos entre seus corpos: o trabalho manual, o repouso e os deslocamentos entre esses espaços através do claustro. O dia a dia no mosteiro cartuxo era pautado por uma experiência sensorial diferente daquela vivida em outras casas religiosas da mesma época já que certas práticas de comunicação sensível entre os corpos, tais como gestos, olhares, sons, e mesmo cheiros, tinham menos ocasiões de existir. Sobravam ainda os momentos de realização dos atos litúrgicos praticados em comunidade na igreja, bem como das refeições coletivas que seguiam o calendário festivo celebrado pela comunidade e pela Igreja. Contudo, mesmo ai o controle sobre a circulação dos corpos era mais forte do que em outros grupos religiosos, já que os cartuxos elaboraram para si um calendário festivo mais magro do que o fausto litúrgico praticado por outras ordens, como era o caso cluniacense[22].
Por fim, é preciso ainda reconhecer a existência de mais uma barreira, além da geográfica e da arquitetônica, erguida entre os corpos cartuxos: a sensorial. De fato, mesmo quando os monges cartuxos entravam em contato uns com os outros durante a realização de algum ato dentro ou fora de sua cela, seus Costumes estabeleciam um forte controle das formas de comunicação verbais (Guigo I, 2001b [1984], capítulo 30, 1) e gestuais (Guigo I, 2001b [1984], capítulo 31, 3).
- Sensibilidade e corpo entre os primeiros cartuxos
“Os monges do século XI e XII eram em seu tempo o que neurocientistas são em nosso: renomados especialistas das emoções” (Rosenwein, 2018). A frase lapidar de B. Rosenwein tem a importância de chamar a atenção dos leitores para o fato de que o historiador deve adequar sua compreensão das emoções aos quadros explicativos da época por ele estudada. Ou seja, valorizar o papel da reflexão monástica sobre as emoções na Idade Média deve ser tão evidente quanto o fazemos hoje para os neurocientistas. A relação entre corpo, sensibilidades e comunicação tratados acima a partir do caso cartuxo nos permite perceber que a proposição feita pela renomada medievalista deve ainda ser expandida para o horizonte social articulado às emoções. De fato, monges e neurocientistas, eram e são especialistas não apenas das emoções, mas também das sociabilidades ligadas a elas. Não há nada de profundamente novo nessa expansão das sensibilidades para o campo social, pois, como vimos acima, abordagens cognitivistas já relacionam há anos emoção e razão como sendo modos interligados de produção de conhecimentos sobre o mundo. Contudo, o estudo da associação entre o pensamento sobre as sensibilidades realizado por monges na Idade Média e suas concepções de sociabilidade, vida comunitária e, em última escala, de eclesiologia oferecem um novo campo de trabalho aos medievalistas. É nessa seara que situamos, a partir dos escritos de Guigo I, o estudo de caso desenvolvido nas próximas páginas[23].
Quando os afetos fazem o corpo
Pudemos observar acima como os primeiros cartuxos (e em especial seu quinto prior, Guigo I) levaram para o ermo uma forte preocupação com os modos de interação social. Característica essa que aparece mesmo em um texto de cunho pessoal e tido pela historiografia como em exemplo de “diário da alma” (Wilmart, 1936: 9). Esse texto que hoje nos é apresentado editorialmente como uma única, linear e coesa obra é na verdade a somatória de reflexões redigidas uma a uma de modo desarticulado ao longo de anos (sobretudo entre 1110 e 1120) e transformado em um único códex entre 1136 e 1160, após a morte do prior[24]. Essa espécie de autobiografia (Misch, 1959) é marcada pela utilidade sensível do outro[25].
A preocupação de Guigo com o outro e seus sentidos fica evidente por meio do uso que faz do termo affectus em suas Meditações. A despeito do isolamento corporal construído por meio das barreiras geográficas, arquitetônicas e comunicativas evocadas acima, o prior não acredita que o religioso vivendo em seu isolamento consiga escapar dos pecados, pois como diz um de seus pensamentos: viver incita à sensibilidade, seja de atração, seja de repulsão (Guigo I, 2001a [1983], pensamento 38)[26]. De fato, em seus momentos de introspecção, Guigo não só produz um pensamento que poderíamos chamar de “antropologia dos afetos” (sem que isso signifique a presença de uma reflexão sistemática sobre as emoções), como a fundamenta na articulação entre afeto, pensamento e sociabilidade, visto que “tal como a ciência, o afeto passa de um a outro” (Guigo I, 2001a [1983], pensamento 178)[27]. Entendido enquanto “motus humanorum animorum” o afeto pode despertar tanto coisas inomináveis (por exemplo, o amor às coisas mundanas) quanto desejos puríssimos (o amor a Deus)[28]. Assim, a natureza afetiva da criação torna possível não somente a queda, como a salvação da alma; é por meio dos afetos e de sua gestão em comunidade que os cristãos devem viver aqui e agora. Em suma, seguindo os pensamentos de Guigo, podemos até mesmo dizer que fora do convívio carnal e sensível não haveria esperança nesse mundo para as almas, daí a utilidade dos corpos, das emoções e dos outros no pensamento de um dos mais importantes representantes do eremitismo tão fortemente propalado no início do século XII (vemos assim a solução dialética mencionada acima quando falávamos das tensões aparentemente paradoxais entre a sensibilidade corporal e a salvação espiritual).
O exemplo dado pelo Deus encarnado é aqui paradigmático para Guigo, uma vez que Cristo teria demonstrado a perfeição das relações sociais por meio do serviço (devotio) divino, do bem (benignitas) ao próximo e do distanciamento (sobrietas) do século (Guigo I, 2001a [1983], pensamento 475)[29]. Após sua paixão, os ensinamentos do filho de Deus continuaram presentes nesse mundo por meio dos sacramentos, das palavras e dos exemplos difundidos pela Ecclesia por meio de corpos e sensibilidades (Guigo I, 2001a [1983], pensamento 475)[30]. De fato, o prior empregou metáforas sensoriais bastante claras para dar conta de como corpo e sensibilidade devem se unir à alma no caminho para salvação:
“A maior utilidade dos corpos está em seu uso enquanto signos. A partir deles são feitos muitos signos necessários à nossa salvação: do ar se fazem as palavras, da madeira as cruzes, da água o batismo. Reciprocamente as almas conhecem seus afetos somente pelos signos corporais” (Guigo I, 2001a [1983], pensamento 308)[31].
Do mesmo modo, Guigo pensa assim a articulação entre os elementos aqui expostos:
“O Verbo de Deus, a alma humana e o corpo humano. Se pudéssemos ver o primeiro, não teríamos necessidade da segunda; se pelo menos pudéssemos ver a segunda, não teríamos necessidade da terceira. Mas como não podemos ver o primeiro nem o segundo, isto é, o Verbo de Deus e a alma humana, o terceiro foi a adicionado, isto é o corpo humano. Assim, o Verbo de Deus se fez carne e ele habita conosco em nosso mundo exterior para assim nos introduzir um dia em seu interior” (Guigo I, 2001a [1983], pensamento 474)[32].
Por meio das sensibilidades a aproximação entre corpo e espírito não apenas foi possível, como se tornou capital, pois atuou na formação da comunidade de fé (Ecclesia, entendida etimologicamente como reunião de fieis, ou seja, assembleia, congregação) em torno da alma racional somada ao Verbo de Deus e à carne, isto é, do Cristo. Foram os afetos (movimentos da alma) os responsáveis pela mediação entre o mundano e o divino; mediação essa fundadora da própria comunidade. A partir dai poderíamos, então, propor uma hipótese de trabalho mais geral: os afetos atuaram de modo significativo no gradativo fortalecimento da instituição eclesial (Igreja) em relação a diferentes comunidades emocionais (igrejas) fundadas em práticas litúrgicas, devocionais e cultuais específicas. Nesse sentido, as diferenças entre cristianismo moçárabe, catolicismo romano, ortodoxia bizantina, heresia, protestantismo etc. estariam ligadas às distintas formas de relações emotivas estabelecidas com os corpos materiais nesse mundo, dando origem a distintas comunidades emocionais. Por fim, essa hipótese geral nos levaria a outra mais específica: as diversas vocações monásticas poderiam também ser compreendidas a partir dessa chave explicativa. Os escritos de Guigo I nos oferecem mais uma vê um bom estudo de caso.
Eclesiologia dos sentidos[33]
“Solicitamos a quem nos ler que não ironize nem repreenda nossos costumes, a menos que tenha permanecido por muito tempo na cela em meio a tanta neve e tão terrível frio. (...) Que aquele que vier a ler essas linhas não se apresse a rir ou a repreender antes de ter vivido nosso modo de vida nesse ermo e em meio a tamanho frio” (Guigo I, 2001b [1984], capítulos 28, 5 e 57, 4). Com essas palavras, Guigo Io alerta seus leitores para que não tratem com leviandade as duras condições de vida dos monges (no primeiro trecho citado) e dos conversos (no segundo trecho) da Grande Cartuxa. As condições climáticas, as temperaturas congelantes em especial, marcam os corpos dos primeiros cartuxos. Nessas passagens, a sensibilidade aparece pouco associada à mortificação do corpo (penitência), como seria de se esperar de um grupo monástico, e mais ao clamor pela empatia: que critiquem as práticas da Grande Cartuxa apenas aqueles que já tiverem sentido em seus corpos os flagelos do clima local[34].
As condições do solo também são evocadas e relacionadas pelo prior à circulação dos corpos. Em uma terra (ermo) tão estreita, dura e quase completamente estéril, alimentar visitantes e suas montarias colocava em risco o propósito de isolamento dos monges que, para os acolher como manda a tradição monástica, seriam obrigados ou a possuir terras e rendas fora do ermo ou a mendigar nas cidades (Guigo I, 2001b [1984], capítulos 19, 1 e 79). Ainda que tais recomendações normativas possam não ter sido seguidas à risca na prática (Excoffon, 1997 e 2007), a escolha do lugar de habitação tinha um forte impacto nos corpos e nas sensibilidades dos primeiros cartuxos. De fato, mesmo entre os conversos que, para exercer seus ofícios pastorais, deveriam circular fora do ermo e tratar com comerciantes externos a ele, a estadia e a alimentação eram controladas quando se encontravam além dos limites das terras cartuxas (Guigo I, 2001b [1984], capítulo 76, 1).
De todo modo, e em acordo com a tradição beneditina, os cartuxos praticavam a hospitalidade e recebiam alguns visitantes ao longo do ano. Dentre eles, nem todos tinham acesso ao claustro da casa alta, pois ficavam alojados com os conversos na fronteira do ermo. Nos dois casos, certo grau de distanciamento deveria ser sempre preservado. O controle dos corpos atuava aqui como modo de garantir que mesmo diante de visitantes, os religiosos pudessem guardar seu isolamento em momentos de sociabilidade. Dois momentos em especial mereciam atenção nesse caso: quando congregação e visitantes se reuniam para os ofícios divinos e também para as refeições. Nessas ocasiões o acesso ao coro da igreja era negado a quem não fosse religioso, assim como a mesa comunitária não poderia receber leigos ou religiosos fugitivos (Guigo I, 2001b [1984], capítulos 10, 1 e 36, 1). Caso algum visitante quisesse se reunir com um monge (note-se: os cartuxos não deveriam manifestar desejo de encontrar pessoas), seus corpos só poderiam se encontrar para conversar no espaço coletivo do claustro (“in claustro communem licet habere sermonem”, Guigo I, 2001b [1984], capítulo 10, 1). Assim, não era lícito “conduzir ou ser conduzido em separado, fazer conhecer algo quase secreto, ou encarregar outros de o fazer, sem ter sido dada autorização pelo prior” (Guigo I, 2001b [1984], capítulo 10, 2)[35]. A necessidade de se realizar tais encontros em público e não em segredo se deve a importância da sensibilidade como instrumento de controle social: as conversas e os gestos entre monges e visitantes deveriam ser vistos e, pelo menos em certa medida, ouvidos pela comunidade.
Temos visto ao longo desse artigo que existe no mundo monástico medieval uma forte ligação entre corpo, sensibilidade e sociedade. Nessa ligação, a comunicação tem merecido um lugar privilegiado, sobretudo quando ela se faz por meio de sons e gestos. Tendo em vista que a linguagem gestual entre os cartuxos era pouco desenvolvida, o silêncio surgia, então, como uma ferramenta capital na gestão sensível de uma comunidade religiosa (Guigo I, 2001b [1984], capítulo 31, 3)[36]. Entre os primeiros cartuxos a falta de sons era resultado de ações e marcavam o aspecto ativo da vida monástica, sobretudo no que se referia à guarda da cela (praticar o silêncio era, de certo modo, levar consigo a cela independentemente do local onde a pessoa se encontre) (Guigo I, 2001b [1984], capítulos 14, 5 e 20, 1-3). Não por acaso o silêncio e a cela figuravam como portos seguros onde o religioso procurava proteção contra os perigos trazidos pelas tribulações do mundo (Guigo I, 2001b [1984], capítulo 16, 2).
O silêncio se aprende. É algo que deveria ser praticado de maneira gradativa, branda e doce a fim de não causar dano à sensibilidade dos recém-convertidos, como é o caso dos noviços (Guigo I, 2001b [1984], capítulo 22, 3-4). Por outro lado, entre os religiosos mais experimentados, o monge encarregado da cozinha, local de forte produção de estímulos sensoriais, era o único autorizado a romper o silêncio com maior periodicidade e autonomia. Em suas funções o cozinheiro devia gerir a chegada e a distribuição de alimentos com precisão, assim como atender a porta da casa alta quando da chegada e visitantes; podia ainda falar com outros monges, pois tratava de assuntos que “ad communes usus pertinent ”. Assim, aquele que mais tinha contato com estímulos corporais era o mesmo responsável pela proteção das sensibilidades dos demais integrantes da comunidade (essa proposição vale também para o prior e o procurador dos conversos) (Guigo I, 2001b [1984], capítulo 30). Para o restante dos monges, o silêncio só poderia ser rompido em situações bastante específicas como no momento de realização de tarefas coletivas (em especial a copia de livros) e em situações de perigo à vida (Guigo I, 2001b [1984], capítulo 32, 1).
Até aqui nos centramos em destacar o controle dos sons no ermo, mas é preciso reconhecer a existência de um deslocamento dessa prática para além de suas fronteiras e em direção ao mundo secular. Tal expansão se dá, como indicando acima, por meio da transferência da topografia geográfica e arquitetônica do isolamento para a topografia do sujeito e de sua interiorização por meio de seu corpo e de sua sensibilidade. O caso dos conversos é bastante revelador de tal processo. Durante suas refeições os conversos deveriam ficar em silêncio não importa onde se encontravam (dentro ou fora do ermo) (Guigo I, 2001b [1984], capítulo 55, 1). Enquanto trabalhavam, circulando pelos caminhos da região, eles deveriam falar e gesticular pouco (Guigo I, 2001b [1984], capítulo 44, 2-3)[37], devendo permanecer em silêncio absoluto caso cruzassem com outro converso (Guigo I, 2001b [1984], capítulo 72, 2). Nem mesmo o porteiro da casa baixa, responsável pelo primeiro contato do mundo exterior com o ermo, deveria falar livremente com os passantes ou visitantes (Guigo I, 2001b [1984], capítulo 64, 1). Por outro lado, tendo em vista que seria inútil proibir toda e qualquer forma de comunicação durante a execução das tarefas ligadas a seus ofícios, os conversos possuíam uma linguagem de sinais mais desenvolvida do que aquela dos monges (ainda que o ensino e aprendizado de novos sinais tenham sido proibidos desde muito cedo) (Guigo I, 2001b [1984], capítulo 45, 1-2). Assim, sendo impossível negar completamente aos pastores o uso de sua voz, Guigo mantinha o controle sobre seus corpos e sensibilidades quando lhes proibia de “jogar conversa fora” (fabulari) dentro ou fora do ermo, mesmo durante a ordenha (Guigo I, 2001b [1984], capítulos 50, 1 e 61, 3).
Chegamos aqui ao ponto capital de nosso argumento. A transposição do ideal de isolamento do ermo para o mundo, dos religiosos para os conversos, do espírito para o corpo produziu a ampliação de um regime ou comunidade emotivos pautados na quietude, ou seja, no controle das emoções e das sensibilidades. As pessoas (em geral e não apenas os monges) deveriam buscar a quietude espiritual, mesmo em meio às tribulações do mundo[38]. É nessa lógica que Guigo se refere aos cuidados que o procurador da casa inferior deve empreender:
“O procurador deve por necessidade, segundo o exemplo de Marta de quem ele recebeu seu ofício, se ocupar e se preocupar com muitas coisas; contudo ele normalmente não tem o hábito de recusar completamente o silêncio e a tranquilidade de sua cela, nem de ter horror a eles. Mais do que isso, na medida em que os negócios da casa permitam, ele sempre recorre à cela como ao recôncavo mais protegido e quieto de um porto para acalmar, por meio da leitura, da oração e da meditação, os movimentos de sua alma que foram criados pelo surgimento e trato das coisas exteriores, e, assim, guardar no segredo de seu coração algum pensamento salutar que ele proferirá suave e sabiamente no capítulo aos irmãos conversos que ele cuida” (Guigo I, 2001b [1984], capítulo 16, 2)[39].
O valor heurístico da passagem depende muito da semântica dos termos empregados e de suas articulações, notadamente a oposição “tribulação das coisas exteriores” / “silêncio” e “quietude” experimentados “no segredo do coração” e na “cela - porto”. Desse embate surge ainda outra relação rica de significados: “pensamentos suaves e sábios” como meio para “acalmar os movimentos da alma”. Nessa comunidade emotiva em expansão e marcada pela quietude, o controle dos corpos sensíveis (em especial sua voz e seus gestos) visava o controle do aspecto interior da experiência humana, isto é, os movimentos das almas e o segredo do coração, aqui entendidos enquanto emoções ou sentimentos. Assim, ordenar e hierarquizar monges e conversos a partir dos diferentes graus de quietude que cada um de seus componentes poderia experimentar (exterior ou interiormente) transforma a sensibilidade no elemento estruturante da comunidade de fé. Em outras palavras, em seus escritos, especialmente nos Costumes, Guigo acabou por alargar as vias (ainda que não de forma intencional) para o surgimento de uma forma emotiva de se pensar a Ecclesia.
Conclusão
Seria a quietude considerada como sendo uma emoção durante a Idade Média? Ao final do percurso analítico apresentado nesse artigo tal questão parece se impor, seja como princípio metodológico do estudo histórico das emoções evocado acima, seja a partir dos enunciados de Guigo I sobre o isolamento dos corpos. Contudo é impossível respondê-la de maneira definitiva, seja pelo escopo da pesquisa aqui apresentada, seja pela polissemia que o termo apresenta. De fato, frequentemente empregado na documentação diplomática medieval, o vocábulo aparece normalmente como um qualificativo de terras e outros bens; esses eram quites, ou seja, livres, pois não possuíam limitações jurídicas a seu usufruto, venda, doação etc.. Nesse sentido, a quietude nada tem de emoção, mas apenas de um estado ou condição inerente a alguém (ou mesmo a algo). O mesmo pode ser dito de outros termos cujos significados atuais também se situam entre emoção e estado ou condição (solidão, angústia, anseio, tranquilidade, satisfação etc.). É preciso então reconhecer que muitos “emotivos” (Reddy) que definem uma “comunidade emocional” (Rosenwein) são de tal modo polissêmicos que podem também assumir significados pouco emotivos em uma mesma organização social. Essa ambiguidade semântica deve ser reconhecida pelos estudiosos das emoções, em especial das emoções estudadas em seus contextos sociais e históricos. Tais estudos podem ou não confirmar uma hipótese geral que foi aqui apenas sugerida a partir de algumas das teorias mais atuais no campo de história das emoções medievais: o estudo das emoções conduz o pesquisador ao corpo e a suas sensibilidades (Boquet, Nagy, Rosenwein); por meio desse percurso podemos perceber que muitas palavras possuem, ao mesmo tempo, um significado emotivo e também outro mais amplo ligado ao corpo social; em suma, o estudo social das emoções pode ganhar muito com o estudo da sensibilidade e de sua polissemia intra e extra efetiva. Nesse sentido, vimos que a quietude, termo fortemente associado à sensibilidade do corpo humano (segundo uma vertente eremítica do monasticismo ocidental), pode assumir, em um plano mais amplo e externo a esse corpo, um significado sociológico claro por integrar o modo como um prior pensava a organização hierárquica de sua comunidade, sem deixar de vislumbrar sua importância como uma espécie de definidor de um “regime emotivo” mais amplo a ser praticado por toda a Ecclesia.
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Gabriel Castanho. Possui Graduação em História pela Universidade de São Paulo (USP). Licenciatura em História pela USP. É Mestre em História Social pela USP. É doutor em História pela École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris. Atualmente é Professor de História Medieval do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro e do Programa de Pós-graduação em História Social (PPGHIS) da mesma instituição. É coordenador do Laboratório de Teoria e História das Mídias Medievais (LATHIMM-UFRJ/USP) e Vice-Coordenador do PPGHIS/UFRJ. Atua principalmente nos seguintes temas: historiografia; história e literatura; semântica histórica, história dos conceitos; história dos sentimentos; eclesiologia, sociologia e estudos dos fatos religiosos medievais; dinâmicas sociais; monasticismo e eremitismo ocidentais.
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[1] “Vous riez aujourd’hui. Pendant mille ans, on n’a pas ri. On a amèrement pleuré”.
[2] Nas páginas que se seguem usaremos “emoção” e “sentimento” como sinônimos, uma vez que na língua portuguesa empregada no Brasil os termos são comumente intercambiáveis. Isto não significa dizer que eles sejam sinônimos perfeitos, muito menos que em outras línguas seus significados sejam equivalentes, pelo contrário.
[3] Pouco depois, Bloch irá associar a emotividade à mentalidade instável medieval: “suas almas, essencialmente instáveis, eram sujeitas a bruscas mudanças” (Bloch, 1982 [1939]: 104).
[4] Sobre a temática ver a útil síntese de Rosenwein (2010).
[5] Sob o título “O que são emoções?” uma versão do primeiro capítulo dessa obra foi traduzida em Lindner (2013).
[6] O texto de P. Ekman e W. V. Friesen sobre as expressões faciais das emoções continuam ainda hoje sendo paradigmáticas nessa linha de estudos. Ekman et Friesen (1971).
[7] Dois dos primeiros estudos das emoções como forma de avaliação dos indivíduos face aos estímulos do mundo são: Arnold (1960) e Schachter et Singer (1962).
[8] Para uma visão mais detida do construcionismo nos trabalhos científicos ver Hacking (1999).
[9] A sistematização aqui apresentada segue Coelho et Rezende (2011).
[10] Para dois exemplos diferentes de estudos históricos das palavras ver: Koselleck (2006 [1979]) e Gurreau (2002 [2001]).
[11] Para a crítica à antropologia construcionista ver, por exemplo, p. 47.
[12] Sobre a proximidade existente entre emoção e política nos estudos históricos ver Prochasson (2005).
[13] A referência à “comunidade textual” é tributária de Stock (1983).
[14] A noção de “trabalho” empregada por Pichon-Rivière para definir a “tarefa” parece se aproximar, ainda que indiretamente, da noção de “meta”; entre as duas noções há a ideia de que a práxis subjetiva constrói tanto o sujeito, quanto a comunidade. “Seria esquemático resumir, sob a noção de tarefa, tudo o que implica modificação em dupla direção (a partir do sujeito e para o sujeito), envolvendo assim a constituição de um vínculo. Trata-se de estabelecer uma noção que englobe, ao examinar um sujeito, sua relação com os outros e com a situação. A noção de ‘trabalho’ tem a conotação ideológica de ser feito por alguém, modificando algo. Sua indeterminação faz que diversas concepções filosóficas, teologias e metafísicas tenham falado a respeito dele. Para nós também é um elemento ideológico, mas sua inclusão em nossa concepção psicossociológica tem por finalidade, como eu disse anteriormente, elaborar, através de esquemas adequados, certas situações práticas.” (Pichon-Rivière, 2005: 36).
[15] Se, por um lado, cada um dos temas que serão tão somente evocados nessa seção de nosso artigo poderia dar ensejo a pesquisas específicas, por outro, a sumarização apresentada a seguir permitirá perceber alguns dos principais traços da profunda ligação existente entre as emoções e o cristianismo medieval ocidental.
[16] A opção pela vertente cenobítica do monasticismo já era clara no ocidente pelo menos desde o início do século V com João Cassiano. (Driver, 2002).
[17] Sobre o ideal eremítico de Pedro Damião e sua relação com a Ecclesia ver: (Grandjean, 1994).
[18] O fundo contraditório do movimento reformista do período foi foco de um breve estudo. Seu autor defendia que a reforma gregoriana, “tout en instaurant une nette séparation entre clercs et laïcs à l’intérieur de l’Eglise, se servit des fidèles pour faire pression sur les clercs hostiles à ses idéaux. Les laïcs furent à la fois exclus et inclus.” (Lauwers, 1997: 199-200).
[19] O documento foi expedido pela chancelaria de Inocêncio II e datado de 1133.
[20] É preciso destacar que a experiência cartuxa do espaço é marcada por uma opção semântica clara que prefere sistematicamente falar em “ermo” mais do que em “deserto”, destacando, assim, que o local nunca teria sido de fato ocupado, por oposição a outros locais que, tendo sido previamente habitados, foram, em seguida, transformados em desertos, ou seja, “desertados”.
[21] Retornaremos a esse ponto mais a frente.
[22] O caso das celebrações dominicais que concentram a parte mais importante das tarefas comunitárias semanais nos oferece um belo exemplo. Ver Guigo I (2001b: capítulo 7).
[23] É importante destacar que o presente artigo tem por objetivo o estudo das proposições de Guigo I e de suas relações com os corpos e as sensibilidades. Não é nosso objetivo desenvolver aqui um estudo arqueológico visando definir as influências, recebidas pelo quinto prior da Grande Cartuxa, do conjunto da produção cristã sobre o isolamento religioso. O tema já foi bastante trabalhado pelos historiadores, em especial por Rieder (1997).
[24] Para a datação ver Miele de Becdelièvre 2004: 181. Sobre a obra ver ainda Wilmart (1936) e Guigo I, 2001a.
[25] Resumiremos aqui algumas das proposições analíticas encontradas em Castanho (2018).
[26] “experientia incitat affectum, attrahendo vel repellendo”.
[27] “Sicut scientia, ita et affectus ex alio in alium quasi venit”.
[28] O paralelo entre afeto e os movimentos da alma humana está em GUIGO I, 2001a, pensamento, 438: “Vide quomodo vendis amorem et caeteros affectus animi tui ad obolatas et nummatas, sicut in taberna vinum. Rursus attende qualiter emas opiniones et amores ac caeteros affectus sive motus humanorum animorum, ad obolatas et nummatas, sicut in taberna vinum” ; a crítica ao direcionamento do amor às coisas mundanas e não a Deus aparece já no primeiro pensamento do prior (“Vide quam vehementes affectus excitent in te nec nominanda, ultra quam Dominus, et quam plures habeant occupatos ad se immundae concupiscentiae, quam Dominus.”) e se repete em muito outros.
[29] “Anima itaque rationalis habens carnem, addita est Verbo Dei, quae per ipsam carnem, quicquid nobis docendis, corrigendis, necessarium erat doceret, faceret, pateretur. In illa sola perfecte fuerunt quae superius tractavimus, id est devotio ad Deum, benignitas ad proximum, sobrietas ad mundum”.
[30] “Per eam [a alma racional encarnada] nobis ipsum Dei Verbum et Sapientia, tripliciter, id est sacramentis, verbis, exemplis, quid agendum, quid tolerandum, et propter quid esset ostendi”.
[31] “Maxima utilitas corporum est, in usu signorum. Ex eis fiunt multa signa nostri saluti necessaria, ut ex aere voces, ex ligno cruces, ex aqua baptismus. Non norunt invicem motus suos animae, nisi per signa corporea”.
[32] “Sed quia nec primum nec secundum, id est nec Dei Verbum, nec humanam mentem videre poteramus, additum est tertium, id est corpus humanum. Atque ita “Verbum caro factum est et habitavit” (Io. 1, 14) nobiscum in exterioribus nostris, ut vel sic nos introduceret aliquando ad interiora sua.”
[33] Por nos desviar do foco central de nosso artigo, as proposições de Guigo sobre a doença e a morte dos monges não poderão aqui ser tratada. Tais questões aparecem, por exemplo, em Guigo I, 2001b, capítulos 13, 17, 38 e 39.
[34] O significado empático das passagens citadas ganha ainda mais força quando lembramos que os Costumes da Grande Cartuxa foram redigidos entre 1121 e 1128 por solicitação de outras casas monásticas que se sentido atraídas pelo propósito de vida cartuxo, solicitaram a seu prior que o colocasse por escrito para que pudessem, assim, seguir seu exemplo.
[35] “In partem vero ducere aliquem vel duci, aut quasi secreto aliquid intimare, aut mandare aliquibus, non licet, nisi licentiam dante priore. Quam licentiam, non ad nos sed ad eos si tanti habent, attinet petere”.
[36] “Soli enim degentes, signa cenobiorum aut nulla aut pauca novimus, sufficere putantes linguam solam, non etiam caeteros artus reatibus implicare loquendi ”.
[37] “Non enim passim vel sine licentia, licet eis quod vel cum quibus vel quamdiu voluerint loqui”. “Unde obviantes vel supervenientes, inclinato tantum licet capite resalutare, viam ostendere, ad interrogata est vel non respondere, et quod amplius loqui cum eis licentiam non habeant excusare”.
[38] A carta enviada por Guigo ao cardeal Aimeric é nesse sentido bastante clara: a vida mundana, mesmo em um palácio papal, pode ser transformada por meio dos afetos e não da autoridade. Ver: Guigo I, 1988 [1962]: 192: “Videtis in quam arcto constituti sumus. Aut enim quod malum est, bonum dicere – quod Deo regente prorsus non faciemus – aut apostolicam Sedem – quod quis audeat ? – reprehendere ; aut – quod forte tutius est – omnino tacere compellimur. (…) Haec non doctoris aut reprehensoris auctoritate, sed dolentis et lamentantis affectu fuderimus, zelo domus Dei, cujus diligimus decorem, rodente viscera nostra, rogantes et obsecrantes ut, si non in caeteris, in vobis saltem nonnihil proferant fructus”.
[39] “Sed et ipse quanvis exemplo marthae cuius suscepit officium, circa multa sollicitari et turbari necesse habeat, silentium tamen et quietem cellae non penitus abicere aut abhorrere solet, sed potius quantum domus negocia patiuntur, quasi ad tutissimum et quietissimum portus sinum ad cellam semper recurrit, ut legendo, orando meditando, et turbulentos animi sui motus ex rerum exteriorum cura vel dispositione surgentes, sedare, et in archanis sui pectoris aliquid salubre quod fratribus commissis in capitulo suaviter et sapienter eructuet possit recondere”.
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