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Pasado Abierto - Año de inicio: 2015 - Periodicidad: 2 por año
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Pasado Abierto. Revista del CEHis. Nº14. Mar del Plata. Julio-diciembre 2021.

ISSN Nº2451-6961. http://fh.mdp.edu.ar/revistas/index.php/pasadoabierto

                                                                           

O Eucarístico de Paulino De Pella: documento literário e investigação histórica sobre a Gália tardo-romana

Uiran Gebara da Silva

                Universidade Federal Rural de Pernambuco, Brasil

uirangs@hotmail.com

Recibido:        10/09/2021

Aceptado:        30/09/2021

Resumen

Por um longo tempo pesquisadores e estudiosos classificaram o Eucarístico texto de Paulino de Pella – um breve poema composto por um monge cristão na Gália do século V d.C. – como um tipo de autobiografia antiga, ignorando as características e o estilo peculiares da tradição poética da antiguidade tardia. Este artigo desafia tal classificação por meio de uma reflexão sobre a apropriação que o autor da poesia teria realizado dos instrumentos de composição e recepção literária de seu tempo. Nesse sentido, busca diminuir a importância geralmente imputada a Confissões de Agostinho como matriz de sentido e escrita e busca por tal matriz nos gêneros da tradição poética da antiguidade tardia.

Palabras clave: Antiguidade tardia, Gêneros literários antigos, Poesia Latina Cristã, Eucarístico, Gália romana

The Eucharisticos by Paulino de Pella: a literary document and historical research on late-Roman Gaul

Abstract

For a long time researchers and scholars have classified Paulinus Pellaeus’s Eucharisticos – a poem composed in the 5th century AD Gaul by a Christian monk about his early life and God’s influence on it – as some kind of ancient autobiography, ignoring the features of the late antique poetical tradition. This study challenges such classification by way of the investigation of the impact on Paulinus’s discourse of Latin poetical instruments of literary composition and appreciation. In this way, it aims at diminishing the importance that has been ascribed to Augustine's Confessions as some kind of writing matrix for the Eucharisticos, and it looks for such matrix in the poetical tradition and genres of Late Antiquity .

Keywords: Late Antiquity, Ancient Literary Genres, Latin Poetry, Eucharisticos, late Roman Gaul.

O Eucarístico de Paulino De Pella: documento literário e investigação histórica sobre a Gália tardo-romana

“(...) tudo caminhava mediante rituais, convenções, fórmulas e, por baixo disso, o que havia por baixo?”.

Italo Calvino

I. Introdução

Paulino é o nome que se atribuiu ao escritor do poema hexamétrico Eucarístico (Eucharisticos/Εὐχαριστικός), de acordo com o manuscrito sobrevivente.[1] Este atribui a obra a um autor anônimo. O autor escreveu ao fim de sua vida uma poesia com 616 versos, na qual descreve sua vida em forma de agradecimento e confissão a Deus. Escrito no século V EC, o poema é uma narrativa da própria história do autor, que busca a expiação cristã dos seus erros, assim como o desenhar da figura de um Deus misericordioso. A gratidão para com Cristo que perpassa todo poema é expressa pelo nome que lhe foi dado: Eucarístico.[2] A narrativa é cronológica, começando, depois de um breve prefácio, com seu nascimento e terminando na época em que foi escrita pelo autor já ancião. Ela expressa história de um membro da aristocracia romana da Gália e as vicissitudes de sua vida no período conturbado da chegada de godos e alanos no sul da Gália.

Há um desafio considerável na tentativa de articular um documento literário desta natureza, uma poesia, com uma investigação histórica. Ele consiste em estruturar tanto o instrumental teórico, quanto metodológico, de forma a dar conta dos limites e potencialidades da expressão individual para a reconstrução do cenário histórico e formulação de respostas ao nosso problema. Ao mesmo passo, é necessário se resguardar da ilusão de que Paulino irá emergir “dos seus 616 versos [do Eucarístico] como um dos mais bem conhecidos indivíduos gauleses da Antiguidade Tardia”[3] (Coskun, 2002: 330). Ilusão esta induzida pela convicção de que o Eucarístico seja pura e simplesmente uma biografia, e por consequência mais transparente em sua representação de “eventos e fatos” que “outros documentos literários”. No que se segue, primeiro faço uma breve reflexão teórica de forma a instrumentalizar o uso de poesias para a investigação histórica, em seguida problematizo a ideia de que o poema Eucharísticos possa ser entendido como autobiografia, mas sim como uma poesia narrativa, demonstrando, por fim, os potenciais da sua forma narrativa para a escrita da História Social de certa aristocracia galo-romana.

II. Gêneros poéticos e História

Até bem recentemente, a prática da investigação histórica sobre a Antiguidade permitia uma certa ingenuidade no trato com os textos antigos, principalmente no que diz respeito à observação de um texto dentro de um corpo maior, um corpus documental.[4] Contudo, a partir do segundo quartel do século XX, operou-se uma ampliação no entendimento do que seriam as fontes legítimas de documentação histórica, ampliação que foi acompanhada de uma ampliação também na consciência da necessidade da interdisciplinaridade e da valorização do instrumental teórico das ciências humanas em geral – psicologias(s), sociologia(s), antropologia(s) – (Dosse, 1994; Davies, 1995). No último quartel do século XX, no contexto das mudanças teórico-metodológicas que compõem a Virada Cultural, Narrativa ou Linguística, impôs-se à prática da investigação histórica a necessidade de uma maior preocupação, por um lado com as estruturas de composição e construção próprias dos documentos (Le Goff e Nora, 1979; Burke, 1992; Hunt, 1992), por outro com a presença dessa construção e de suas regras próprias na prática do historiador. (Stone, 1981; White, 2001; Hunt, 1992). Os estudos sobre a Antiguidade, apesar de certa resistência, também não ficaram imunes aos impactos dessas “viradas”.

Richard Milles, na introdução de um volume sobre a construção de identidades no Mundo Antigo, escreveu:

“Os estudos recentes sobre o Mundo Antigo espelharam uma preocupação mais ampla da academia com identidade e diferença. Os últimos quinze anos viram o desenvolvimento gradual de uma atitude mais sensível para com o texto e a imagem, os quais não são mais considerados simplesmente como minas de dados empíricos que ajudarão o estudioso clássico a reconstruir a “realidade” do mundo antigo, ou como um exercício literário isolado, mas ao invés como forças culturais dinâmicas que criam seu “imaginaire” e sentidos próprios” (1999: 2)[5]

Uma possível leitura da ideia de que os textos devam ser entendidos como forças culturais que criam seu próprio sentido ou imaginário, preocupadíssima com o resguardo do campo específico e regras próprias de construção do texto, dissolve a voz do construtor do texto e acaba por pensá-lo apenas como estrutura autônoma, apenas como desenvolvimento de uma tradição, independente dos seres humanos que o escrevem. Não é a abordagem que busco aqui. O que pretendo é utilizar a compreensão da tradição escrita na qual o poema se insere para entender que apropriação o autor de o Eucarístico realizou ao objetivar em manuscritos sua voz.

Inserir o Eucarístico num universo de textos exige entender como a forma literária escolhida para sua produção textual se relaciona com o contexto social, no sentido específico de qual seria uso social daquela forma de literatura que fez com que o autor optasse por aquela e não outra, ou em certos casos, por uma mistura de formas. Isto é, por que um autor latino escreve um texto em hexâmetros e não em iambos, e não em prosa? A indagação sobre a pertinência do Eucarístico a um gênero poético é importante, uma vez que esta categoria nos permite realizar a investigação num sentido geral das relações entre forma e conteúdo na Literatura Latina. Neste sentido, uma concisa apresentação do que entendo por gênero é necessária.

Uma obra literária é uma composição de vários elementos que dizem respeito tanto a suas características formais, quanto a seu conteúdo específico: temática (ou conteúdo), estrutura (ou disposição das partes e dimensões), a língua, o estilo, o metro; em certos casos, dança e música também (Rossi, 1971: 71). Os gêneros foram estruturados pela filologia alemã do século XIX a partir do reconhecimento tanto das relações formais gerais quanto das alusões presentes nos textos antigos. Reconhecia-se a presença dos gêneros como instrumento de composição, mas por causa de certa compreensão dicotômica da literatura, colocada entre ficção ou realidade, caía-se ora num profundo formalismo que via os gêneros como fórmulas estáticas à qual se acrescentaria conteúdos vividos (Conte, 1994: 107), ora numa concepção do gênio criador, para a qual os gêneros são um momento provisório desta criação individual (Rossi, 1971: 71). No primeiro caso, reduzia-se a ação do escritor à escolha dos conteúdos, ou a nada, quando estes se apresentam na forma de topoi. No segundo caso, reduzia-se a dimensão coletiva da obra literária, buscando valorizar apenas a capacidade de um autor antigo de se aproximar ou não do critério de expressividade literária moderna. Além dessa compreensão dicotômica, estabeleceu-se também uma das mais duradouras críticas ao uso da classificação em gêneros nos estudos literários: a ideia de que esta seria uma noção externa, fruto do trabalho posterior de teóricos modernos. Ou, numa variante mais condescendente, a posição que os reconhece como obra de teóricos antigos – como, por exemplo, Aristóteles em Poética – ou ainda editores e bibliotecários – no sentido estrito que esses ofícios apresentam no Mundo Antigo, isto é, editores de manuscritos, como Calímaco (Rossi, 1971: 70-73).

Uma concepção que consegue escapar das armadilhas tanto do formalismo, quanto do idealismo, é a noção de Composição Genérica de Francis Cairns (1972). Nessa concepção os gêneros deixam de ser vistos apenas como categorias de agrupamento posterior das obras, mas como elementos presentes no próprio trabalho de composição, em íntima conexão com a prática criativa, e também presentes na prática de apreciação realizada pelos leitores, pelo público.[6]

Gian Biagio Conte (1994: 105-128) propõe, por sua vez, que o gênero é um sistema de referências de sentido integrante da práxis mesma dos autores literários de maneira que este sistema totalizador seja o responsável pela determinação última dos sentidos dos elementos individuais da obra. Os prefácios, os topoi, as exortações, os personagens e os argumentos, os modos de narração, a métrica assumem significados diferentes de acordo com os diferentes gêneros onde se fazem presentes. Complementarmente, é a presença ou não de certo conjunto de elementos que demarca para as obras literárias a pertinência ou não a este ou aquele gênero, numa dialética da construção dos sentidos. Entendido como esta forma de sentido mais geral em uma obra literária, o gênero assumiria para estas o papel que a ideologia assume para a cultura de uma classe (Conte, 1994: 105-128). Pensar a pertinência da obra a um gênero ou, como é possível, a mais de um, é ter em mente essa relação que se estabelece entre seus elementos e a totalidade deles na produção do sentido da obra. 

III. Eucharísticos como autobiografia?

O Eucarístico é dado como poema autobiográfico ou Autobiografia por vários estudiosos: Emanuela Colombi, (1996: 407), Altay Coskun (2002: 329; 2006: 285-287), Pierre Courcelle em um importante artigo onde propõe a existência de uma possível outra obra de Paulino (1947: 108)[7], Dulce Estefania (2000: 122) Jacques Fontaine (1981: 233), Walter Goffart (1980: 104 n. 3 ), Raúl Lavalle (2004: 185), A.H.M. Jones (1992: 172), John F. Matthews (1990: 150) e obviamente, em sua obra História da Autobiografia Antiga, Georg Misch (1950: 672). Hugh Evelyn-White (1985: 299-301), Harold Isbell (1971: 242-243), Pierre Labriolle (1924: 626) e Courcelle, em seu “magnum opus” (1955: 86), embora não lhe denominem autobiografia e se restrinjam à noção de epheméris, valorizam como o maior mérito do poema a sinceridade do autor. Os únicos estudiosos que apresentam uma maior consciência da artificialidade dessa instância autobiográfica no Eucarístico e a tornam um problema de investigação são Neil McLynn (1995) e Michael Roberts (1988).

Ao se afirmar que o Eucarístico seja uma autobiografia, realiza-se indubitavelmente um reconhecimento de gênero literário. Tal atribuição é baseada na rápida apreciação do argumento do poema: seu narrador escreve em primeira pessoa a respeito de sua própria trajetória de vida. Isto, porém, deve ser questionado.

O termo biografia, apesar da traiçoeira morfologia grega, é do século VI EC, enquanto o termo autobiografia é mais moderno ainda, datando do século XIX (Momigliano, 1993: 12-14). No entanto, não é tanto o termo que é central numa indagação como essa, mas a existência ou não de uma prática de escrita antiga similar à moderna, que poderia não ter necessariamente o mesmo nome, e, contudo, apresentar as mesmas estruturas expressivas. No que diz respeito ao seu estatuto como formas de representação de conhecimento objetivo da sociedade, pressuposto cultural tanto da História quanto dos bioi antigos, o que se verifica é que há enormes diferenças quando estas são comparadas com suas contrapartes modernas, mesmo que, no que diz respeito à sua escrita, ou no seu entendimento como gênero literário, haja certas semelhanças de propósito e de estruturas discursivas, particularmente, na relação da Biografia (moderna) com o bios (ou com a latina de vita sua).

Observando a estrutura do bios o que se verifica é que esse gênero possui fronteiras flexíveis. Para definir a biografia em termos de uma unidade formal, seria necessário observar que existe uma articulação pouco rígida dos seguintes parâmetros: o princípio de estruturação do discurso (cronológico ou temático); o uso de anedotas (ou episódios de vida), que podem ocasionalmente apresentar topoi, mas não necessariamente se constituem neles; a explicitação (ou não) da emissão de julgamentos, positivos ou negativos, a respeito do caráter do biografado; a apresentação da vida em âmbito privado dos biografados. Este último, na verdade, é o sentido geral do bios como gênero de acordo com o conceito apresentado acima.  

Os modelos de bios, que poderiam ter tido influência imediata na escrita do Eucarístico são as Vidas de Santos, um gênero consolidado na Antiguidade Tardia. A Vida de Santo Antão, escrita por Atanásio (2002) em grego, é considerada o primeiro modelo de Vida de Santos (Cameron et Garnsey, 1998: 699-700). A construção da Vida desta personagem é uma narrativa cronológica, em prosa, que apresenta desde o início os indícios do caráter santo do personagem principal, quando ainda menino. A trajetória de sua vida é construída a partir de inúmeros desafios físicos e morais ao personagem, entremeados por episódios de ascetismo, e superados sempre pela força moral ou pelos poderes miraculosos do santo. Conclui-se com a pacífica e iluminadora morte do santo. O sentido geral da obra é estabelecer as ações e o valor de um homem incomum, com sentido exemplar. Isso não era novidade para o bios: já havia há muito inúmeras Vidas de Sábios com este propósito. A novidade estava na defesa da fé cristã através desse exemplo individual escrito.

Essa estrutura é repetida em geral na maior parte das Vidas de Santos (Gentili et alii, 1995: 484-488). Mas há muito mais nelas do que essa estrutura formal. Esta estrutura, um sistema de referência e construção geral de sentidos, passou a ser utilizada para contar os sucessos de inúmeros homens santos dentro e fora do Império Romano, em ambientes urbanos ou rurais, contra bandoleiros do deserto, reis bárbaros ou demônios, mantendo-se a particularidade de cada Vida, seja no sentido exemplar específico, seja nos episódios e personagens apresentados.

Porém, a simples observação da narrativa central de Eucarístico não permite dúvidas: não há muita semelhança com Vidas de Santos. O protagonista do poema arrola em primeira pessoa uma sucessão de infortúnios e derrotas, nas quais quase nunca o que deseja é o que prevalece. Além disso, não tenta se mostrar como um exemplo de comportamento, mas sim com um praticante reincidente de erros na fé e na vida. É, no entanto, a partir destes erros que se revela o motor da narrativa: Cristo, que conduz o protagonista à tranquilidade do reconhecimento derradeiro da vida no ascetismo. A partir de apenas um exame geral de sua estrutura, pode-se afirmar que o Eucarístico não é uma Vida de Santo.

A problematização da “autobiografia” antiga, por sua vez, leva à constatação da sua inexistência como gênero literário na Antiguidade. Houve, de fato, certas formas de escrita, como as hypomnémata, ou ephemérides, espécies de diários, que exprimiam como tema o mesmo que a autobiografia moderna: a prática de registro da própria vida do escritor. Inicialmente no período helenístico, hypomnema, enquanto o registro pessoal, epeheméris enquanto o registro oriundo de situações de trabalho burocrático ou situações políticas. Ambas, porém, não possuíam regras formais elaboradas e consolidadas, muito menos a perspectiva de publicação, sendo muito mais exercícios de escritas pontuais e a distinção entre elas tendeu a desaparecer na escrita latina (Momigliano, 1993: 90-97). Deve-se notar que o autor de Eucarístico se refere a ele como uma epheméris duas vezes[8] e o que se pode inferir disso é a concordância com o elemento temático da ephemeris: o falar de si.

Uma última hipótese nesta linha seria a influência formal de Confissões de Agostinho. Porém, embora Confissões tenha influenciado a escrita de meditações filosóficas e teológicas que teriam as ações e reflexões do próprio escritor como elementos da construção do indagar-se, a influência sobre essa “grande forma biográfica”, como afirma Georg Misch, só acontece no século XVIII (Misch, 1950: 633-634). Ao procurar pela “autobiografia da antiguidade tardia”, além de Eucarístico, Misch aponta outras três obras (1950: 670): uma obra anônima escrita em prosa por volta de 410, chamada Confessio; outra Confessio, escrita também em prosa por um bispo, Enódio, em 511; e a Confessio, também em prosa de Patrício, o missionário da fé cristã na Irlanda, em 459. Quando colocado lado a lado com estas outras obras, em prosa, a distância entre o poema e a obra de Agostinho aumenta.

Se for possível encontrar alguma espécie de filiação literária do Eucarístico a Confissões, ela estará na semelhança de certas expressões, ou na forma humilde da elocução de certos trechos (Fontaine, 1981: 234; Misch, 1950: 675), isto é, o uso do sermo humilis agostiniano (Auerbach, 2006: 29-76).

Que Paulino possa ter lido Confissões é mais do que possível, uma vez que há elementos em sua obra que parecem remeter à obra favorita de Agostinho. Porém, Confissões não parece ser uma influência determinante na composição do Eucarístico. Talvez o seja no plano da inspiração, no do contato espiritual entre dois homens cultos. Não o é, porém, como a influência de um gênero na prática de escrita. O primeiro indicador da particularidade do Eucarístico é o próprio Misch que aponta: o título Eucarístico destoa dos títulos das outras obras da primeira “onda” de trabalhos filiados a Confissões. Esse título já é um indício de que as intenções do autor não são exatamente a uma imitatio da confissão agostiniana.

Embora o autor do Eucarístico se refira à sua própria obra como uma meditatiuncula em seu prefácio (Euch. praef. 4.), o que poderia indicar uma inclinação ao exercício filosófico agostiniano, o sentido geral da obra a distanciam de Confissões. Esta é uma obra filosófica que utiliza a matéria de vida de seu narrador para induzir o leitor a indagações de cunho metafísico e teológico, cujas respostas inefáveis são delineadas pelas perguntas cada vez mais esquivas, cada vez mais precisas. Não temos esse tipo de desenvolvimento questionador no Eucarístico.

Ao observarmos o poema formalmente, percebe-se uma sua característica decisiva que quase todos os autores que o estudaram (Coskun, 2002: 330; 2005: 287; Courcelle, 1955: 86; Lavalle, 2004: 180; Misch, 1950: 674) relevaram como uma idiossincrasia formal, secundária para a compreensão da “autobiografia” galo-romana: o Eucarístico se apresenta em hexâmetros espondaicos[9].

As observações de Evelyn-White denotam uma clara indisposição contra o metro utilizado: “(...) é evidente que Paulino usou o hexâmetro puramente como uma forma convencional, na qual suas palavras deveriam ser forçadas”, [10]chegando mesmo a sugerir que o melhor seria ter composto uma tragédia com tal relato (1985: 300-301). Sua postura com relação a Paulino só é comparável aos limites que sua concepção estética impõe à apreciação do próprio Ausônio. Em sua introdução ao poeta, depois de desprezar o uso de ou o jogo com as convenções formais característicos da poesia do autor de Mosella, afirma num lampejo típico dos estudos nos quais a fascinação prática e empírica encontra dificuldades em vencer as barreiras impostas por categorias inadequadas: “Mas se nós pudéssemos admitir apenas por um momento que estas e similares matérias fossem objetos legítimos de um tratamento poético, nós teríamos também de admitir que  Ausônio era um mestre em sua arte.[11]” (Evelyn-White, 1985: XVIII)

Há aqui dois problemas cuja origem está antes nos estudiosos do que nos objetos de estudo. Assim como há uma visão decadentista da sociedade da Antiguidade Tardia, fundamental para a construção da noção historiográfica de “Queda do Império Romano” (Cameron, 1994; Mazzarino, 1991; Ward-Perkins, 2005), há uma visão decadentista vinculada à arte e à literatura da época (Roberts, 1989). A maioria dos autores que estudaram Paulino e o Eucarístico, não só compartilham desse paradigma, como também têm em Paulino uma das suas principais evidências dessa decadência cultural. Dessa forma, mudanças lingüísticas naturais no vocabulário e falta de talento poético se transformam em semi-analfabetismo, ou quando há certa condescendência, diletantismo literário.

Certa consciência poética moderna impede Jacques Fontaine de reconhecer plenamente as escolhas poéticas de Paulino, assim, também o classifica como uma autobiografia; como outras Confissões, mas em miniatura (Fontaine, 1981: 234). Mas, ao supor que esse aristocrata romano, com certa educação nas letras latinas e muita experiência em papelada imperial, sabia o que estava fazendo ao escrever suas reminiscências em um monastério ao fim de sua vida, Jacques Fontaine consegue reconhecer algum mérito poético no poema:

“Desse lirismo, aplicado ao retorno de si mesmo diante do testemunho, o fruto mais saboroso é também o mais tardio. (...) Por sua educação, sua cultura, mas antes de tudo, sua hereditariedade, o neto de Ausônio se achava como predestinado a escrever em verso uma confissão que transpusesse, em outro registro muito das características da poesia ausoniana; para o melhor e para o não tão bom” (1981:233-234).[12]

O termo lirismo, como é usado aqui é a maior barreira para que Fontaine aceite plenamente as escolhas poéticas do Eucarístico. As categorias poéticas criadas pelo Romantismo, através das quais se desenvolveram também os Estudos Literários Clássicos, colocam a lírica como a poesia do eu. O que muitos estudiosos da lírica clássica têm apontado hoje é que não era esse o papel da lírica na literatura da Antiguidade (Achcar, 1995: 37-42; Oliva Neto, 1996: 35-36). A lírica tinha um espaço preciso no mundo romano, no qual a composição poética se consolidara na forma escrita, mas a poesia tinha situações sociais, temas e métrica definidos para sua performance. A ideia de que a lírica é a poesia do eu é muito mais uma proposta moderna, legítima para este mundo moderno, mas que se utilizada para o mundo antigo, resulta numa projeção anacrônica, que torna opacas as características da poesia da Antiguidade (Oliva Neto, 1996: 28-45; Rossi, 1971: 91-93). Uma das lições desses novos estudos sobre a lírica é a de que a matéria pessoal que aparece na lírica antiga é construída de forma a demonstrar um afeto de intimidade ou de sinceridade. Francisco Achcar denomina esse efeito de fides da poesia lírica em oposição à tentação moderna de reconhecer de imediato a realidade dos conteúdos pessoais como evidências históricas, o que ele denomina biografismo (Achcar, 1995: 43-45).

Entretanto, o uso do artifício da fides e a crítica dos estudos literários ao biografismo poderia sugerir um caráter ficcional de uma poesia como o Eucarístico. Mas há dois topoi presentes no poema que assinalam que os objetivos do autor eram o de fazer uma narrativa sobre “as coisas acontecidas”. O primeiro artifício ocorre numa passagem antes da narrativa de sua infância, imediatamente após ter conhecido seu avô Ausônio e de seu 3º aniversário:

“Que depois de completado e que o crescente vigor firmou meus débeis membros, e que minha mente, cônscia de sentido, acostumou-se a conhecer o uso das coisas, é necessário que tudo o que já [...] pude lembrar de mim, reconhecendo por fé própria, eu mesmo escreva” (Euch. v. 50-54).[13]

        Nele se apresenta um topos recorrente no discurso histórico antigo, mas também muito utilizado em outras situações, nas quais o escritor enxergava a necessidade de legitimar a realidade dos eventos relatados. A declaração de que testemunhou diretamente tudo o que relata, isto é, o critério primário da Antiguidade de validação dos testemunhos no gênero histórico.

“Estas cosas se presentaron ante mí, pero no podían aún ser comprendidas por mi mente; las descubrí después, gracias a los frecuentes relatos de quienes las conocían, y pensé que debía incluirlas en mi obra” (Euch. v. 38-41).[14]

Já o segundo topos, que ocorre um pouco antes do primeiro e se refere a todas as coisas que se passaram quando ainda era bebê, constitui-se numa apresentação de uso de testemunho secundário. Este também era importante, mas para legitimar o relato em fatos efetivamente ocorridos, que, no entanto, acabava tendo menos peso que o testemunho direto.

Assim, e isso é uma observação fundamental para entendermos a eficiência do Eucarístico como uma epheméris, a experiência vivida do poeta é reconstruída no papel através de instrumentos formais que organizam e permitem dar um sentido maior àquilo que subscreve. Estas ferramentas permitem ao autor selecionar as experiências e as re-significar de acordo com uma visão geral, para além do sentido que teriam como episódios isolados. E aqui, como se verá, estamos muito próximos do sentido ideológico que Conte atribui ao gênero.

Pensando sua estrutura formal, o Eucarístico assume como modo discursivo a primeira pessoa, tendo como interlocutor ocasional uma segunda pessoa, Deus. Esta narrativa em primeira pessoa do Eucarístico se processa através de um eu-poético também narrativo. As narrativas se substancializam num falar de si, seu elemento “autobiográfico”, que em articulação ao discurso em primeira pessoa criam facilmente o efeito de que o que está escrito é a própria voz interior do escritor, numa posição de intimidade para com o leitor, de forma emular uma situação de sinceridade.

IV. Hexâmetros, por quê?

Faz-se oportuno atentar que os mesmos autores que relevam o metro utilizado no poema e menosprezam seu talento poético, também elogiam a sinceridade de Paulino (Coskun, 2002: 331; Evelyn-White, 1985: 301; Labriolle, 1924: 629; Misch, 1950: 673).

Altai Coskun (2005), em seu trabalho mais recente reconhece capacidades literárias em Paulino e coloca como questão sua sinceridade, em termos de uma estratégia de escrita. O problema que se depara e que lhe resulta em enormes dificuldades é que quer encontrar um princípio de organização formal para o Eucarístico numa obra em prosa (Confissões, como Misch), ignorando assim, os sinais que lá se fazem presentes na métrica.

Assim, apenas Dulce Estefania e George Duckworth perceberam a possibilidade de que esse metro não seja gratuito. Estefania demonstra em que medida o arcabouço cultural de Paulino lhe permitia formular sua obra em hexâmetros, apresentando um distante antecessor Cícero. A autora aponta o bom uso que se faz no Eucarístico das estruturas da poesia épica: a propositio e a invocatio no início, o topos de humilitas do poeta, a coerência do endereçamento a Cristo no início e no fim do poema. Além disso, Estefania assinala a pertinência dentro da escrita do prefácio à tradição poética latina de Bourdeaux – como se vê claramente em Ausônio. Ela, porém, termina propondo a existência de todo um subgênero da épica, a “autobiografia poética em hexâmetros”, baseada apenas nestas duas evidências e na relação entre ambas por meio da obra de Virgílio (Estefania, 2000). Há grande mérito em seu estudo, porém, ao destacar o significado dos hexâmetros na estruturação do Eucarístico.

Duckworth, por sua vez, em um estudo quantitativo dos usos da variação da quantidade das sílabas em cinco séculos de poesia hexamétrica, insere Paulino dentro de um conjunto de poetas épicos cristãos latinos do Império tardio, assinalando o caráter virgiliano do hexâmetro espondaico do Eucarístico. Duckworth apresenta a possível unidade de uma série de autores que outros estudiosos não costumam reconhecer (1975: 126-139). Wilhelm Brandes, em sua edição do Eucarístico para o Corpus Ecclesiasticorum Latinorum Scriptorum, publicou um estudo das alusões que o autor do poema fez (Brandes, 1888: 315-316), e não há surpresa em encontrar grande parte daquele grupo de poetas hexamétricos presentes em Duckworth citados no Eucarístico, junto com Ovídio, Horácio e, com mais da metade das citações, Virgílio [15].

Seguindo Duckworth, o metro presente no Eucarístico é o da épica, mas em que medida isso determina a composição da poesia? A épica é a narrativa poética das grandes ações, dos grandes feitos, dos grandes acontecimentos. É a forma tradicional da poesia heróica. É também o hexâmetro o metro do Hino Homérico, que se não sobreviveu de forma autônoma, o fez de forma velada em várias passagens da Eneida de Virgílio.[16] E ainda é o metro do epyllion, pequeno poema narrativo desenvolvido no período helenístico, em hexâmetros, com apenas algumas centenas de versos (Oliva Neto, 1996: 30-31), nos quais a matéria era a do encontro amoroso ilustrada por um episódio mitológico com estilo baixo, e cujos exemplos seriam Calímaco e Catulo. Porém este sentido do termo epyllion, foi inventado pela crítica moderna, no século XIX, sendo que na Antiguidade seria utilizado de forma muito menos técnica, como, por exemplo, por Ausônio (Allen Jr., 1940). Mas a recorrência de tal estrutura em vários autores, porém, indica a existência da forma poética.

O Eucarístico não é um épico: por seu conteúdo e por suas dimensões, não poderia ser classificado como um epos. Ainda assim, além da composição em hexâmetros, suas partes se assemelham às deste: a propositio e a invocatio e a narrativa. O uso que o poema faz destas características, deve ser visto sob a ótica deste conteúdo, portanto.

Em seu Generic composition in greek and roman poetry, Francis Cairns, constrói princípios de classificação de gêneros e espécies de poesia, baseados na origem destes gêneros em situações práticas, geralmente de caráter coletivo, convertidos em padrões de composição:

“As fórmulas genéricas eram similares às prescrições de Menandro[17], mas mais amplas e adaptáveis que elas. Elas podem ser pensadas, embora os escritores antigos não as considerassem desta forma mecânica, como listas completas com os elementos primários e topoi de cada gênero. Elas poderiam ser utilizadas em todos os tipos de prosa e poesia. As fórmulas genéricas não eram confinadas aos propósitos estreitos da instrução retórica, e sim parte da herança cultural e social de todos os homens educados na Antiguidade” (1972: 37).[18]

Sua classificação não é apenas baseada na matéria, pois também parte da divisão desta em certos elementos recorrentes, assim como de topoi. No entanto, estas fórmulas podem ser utilizadas tanto na prosa, como na poesia. Nosso autor escreveu um poema cuja matéria é um εὐχαριστικός. Cairns, junto com a soteria, e actio gratiarum, os considera subespécies do gênero epidítico (das quais o epicédio, elogio dos mortos, composto em dístico elegíaco é apenas um dos exemplos em forma poética).

Enquanto a soteria é uma fala na qual se congratula e agradece a segurança de alguém que foi resgatado do perigo, ou da doença, geralmente endereçadas a um deus, com sentido honorífico, mas ao mesmo tempo voltado para a pessoa salva. Cairns a considera uma subespécie do εὐχαριστικός ou actio gratiarum, que nomeariam agradecimentos formais, existindo tanto na forma de logos, quanto de hymnos.

As semelhanças com os objetivos do nosso Eucarístico estão claras. A escolha da forma poética deve ser imputada ao desejo de associar o agradecimento, antes a um hino, do que a um discurso. A presença clara de alusões virgilianas no Eucarístico poderia ser indício de sua escolha pelo hino em hexâmetros.

Há, porém, uma hipótese que não exigiria que se supusesse no autor do Eucarístico um conhecimento tão refinado das referências da poesia de Virgílio. O hexâmetro é o metro mais indicado para a narrativa de eventos e acontecimentos ou descrição de coisas e situações. Assim, se o intento do poeta era realizar um agradecimento a Cristo, por meio da narrativa de sua vida e descrição das graças a ele concedidas, o hexâmetro parece o metro mais indicado. E o objetivo de compor uma poesia narrativa e descritiva enquadrava o Eucarístico, dessa forma, nos critérios estilísticos da poesia da Antiguidade Tardia (Roberts, 1988). Nestes, era dado grande valor ao uso que os autores faziam das descrições (ecphrasis, para os teóricos gregos, descriptio, para os latinos), ou da narração (diegesis ou enarratio). As quais deveriam ser construídas de acordo com o exercício da leptologia, isto é um conjunto de técnicas que permitiam uma descrição detalhada, pensando, uma a uma, as partes do todo. Se, para o gosto clássico, a leptologia era um procedimento que se subordinaria ao critério do equilíbrio formal, na relação das partes com o todo, na poética (e nas artes visuais) da Antiguidade tardia não é mais esta visão equilibrada que dá unidade à obra, mas um princípio invisível, ou abstrato, ou metafórico (Roberts, 1989: 40-65).

O objetivo deste procedimento era a criação do efeito de realidade sensorial do objeto descrito ou narrado (enargeia ou evidentia). Por sinal, a habilidade de manifestação da enargeia é justamente um dos critérios fundamentais de avaliação da obra de um Historiador na Antiguidade, que deveria alcançar, baseado fundamentalmente em testemunho de primeira pessoa, o mesmo tipo de efeito de realidade nas suas obras (Ginzburg, 2007: 17-41).

As descrições do Eucarístico obedecem claramente a tais critérios, quando descreve suas diversões adolescentes[19]:

“tener para mí un bello caballo y adornado de fáleras,

un alto escudero, un perro veloz, un hermoso halcón;

también una pelota dorada, recién traída de la ciudad

de Roma para que, lanzada, sirviera ella a mis juegos;

tener, en fin, siempre vestido nuevo y arreglado y toda

cosa nueva perfumada con suave olor de mirra árabe.

Y no menos me agradaba correr vivamente,

llevado en veloz corcel; (...)” (Euch. v. 143-150).[20]

        Ou quando descreve seus bens como homem casado e empreendedor:

“y deseaba para mí una lujosa casa con amplias

habitaciones y apta para todos los tiempos del año,

de una mesa brillante, con muchos y jóvenes siervos,

mobiliario abundante y agradable para diversos usos,

también con plata mejor en valor que en peso, artífices

expertos en varias artes y rápidos en cumplir lo mandado;

con establos repletos de animales bien alimentados y con

hermosos carruajes que me llevaran con toda seguridad” (Euch. v. 205-212). [21]

        Ou quando narra o cerco da cidade de Vasates:

“los límites de la ciudad son vallados con soldados

alanos, tomada y dada la fe de pelear por nosotros,

a quienes poco antes habían sitiado como enemigos.

Rara se veía la ciudad, cuyos muros inermes rodea

por todas partes turba de uno y otro sexo, que yacía

afuera; columnas de bárbaros que asían nuestros

muros son vallados tanto por carros como por armas” (Euch. v.383-389). [22]

É possível ver em todas estas passagens o esforço de reconstruir a cena, mas “quebrando-a em suas partes constituintes, que serão então enumeradas com detalhe elaborado (...) é um processo de fragmentação e miniaturização” (Roberts, 1988: 193). Assim, o uso de um metro elevado se adequa ao conteúdo do Eucarístico? Não, se o que esperamos do poema for um Confissões de segunda mão, do qual nossa sensibilidade poética moderna espera encontrar o relato de uma tragédia pessoal, cujo autor expõe sua individualidade de forma autêntica e sincera ao leitor. Esse, contudo, não era seu objetivo.

V. Considerações finais

Temos aqui reunidos elementos suficientes para propor outro sentido estruturante para a leitura do poema. Temos um poema que tem como tema a vida passada de seu narrador, cujo desenrolar é a narrativa do processo de abandono do mundo por um indivíduo, com sua conversão, sua submissão ao cristianismo e a uma providência cristã. Essa narrativa é realizada por um eu-poético (não um eu-lírico; atrevo-me a dizer um eu-épico) em primeira pessoa que constrói o efeito de sinceridade, e se endereça a uma alteridade divina. A narrativa é composta de episódios de sua vida, de forma a: 1. sob o testemunho das suas experiências agradecer à alteridade divina; 2. reconhecer a própria existência do narrador como devida a essa alteridade divina 3. descrever em submissão os atos de toda sua vida, como guiados por tal alteridade providencial, seja pela presença disciplinadora exercendo-se moderadamente através dos erros, seja pela misericórdia nas adversidades (Euch. praef. 4).

Essa ubiqüidade e onipotência da providência divina, que se exerce no mundo encaminhando o protagonista da narrativa em meio a acontecimentos adversos, ocasionados pelas penetrações de godos e alanos na Gália Romana do século V, seria digna de um metro heróico? O herói não é o protagonista narrador. O alvo do engrandecimento proporcionado pelo metro é a providência, retomada, momento a momento por digressões agradecidas, significando os eventos, as ações, os desastres e os erros do protagonista, que nunca se apresenta de forma satisfatória perante as exigências daquela; que tem dificuldade em renunciar aos confortos do mundo e ao seu modus vivendi de membro da elite proprietária romana; que participa de heresia; que acredita que seja possível ser um bom cristão não praticante; que por fim converte-se ao monasticismo, quando pouco a pouco a providência encaminhou-lhe ao ascetismo forçado, que vê das margens a transformação que acontece na terra de seus ancestrais, gradualmente passando para a regência de novos líderes.

“O poema é um registro da reação de um homem a eventos tamanha consequência que não lhe seria possível entendê-los. Sua falha em perceber a magnitude do que contava é uma falha que não poderia ser evitada. A Queda do Império é necessariamente algo grande, mas a grandiosidade só pode existir para o observador” (Isbell, 1971: 243).[23]

        

Teria mesmo Paulino falhado em perceber a magnitude do que acontecia? Ou é a vontade de ver nele apenas um relato autobiográfico, ou de medir-lhe pela régua da lírica, que nos impede de reconhecer o elemento que fornece o sentido grandioso à narrativa de sua epheméris?

Neste contexto, o autor do Eucarístico atuou em vida e construiu, passo a passo, um projeto de si. A objetivação desse projeto que nos chegou como vestígio material e simbólico é a sua poesia. Eucarístico é simultaneamente produto e último vestígio da situação social particular que o produziu. Mas é ele que nos permite perguntar como é que seu autor se definiu e se objetivou em projeto, como se apropriou dos instrumentos culturais que seu universo social disponibilizou, como os utilizou e transformou para si, e transcreveu sua experiência para a memória social (ou, de sua perspectiva, para o deus cristão).

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Uiran Gebara da Silva possui graduação em História pela Universidade de São Paulo (2003), mestrado em História Social pela Universidade de São Paulo (2008) e doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (2013). Professor de História Antiga da Universidade Federal Rural de Pernambuco. Foi Pesquisador associado em pós-douramento da Universidade de São Paulo de janeiro de 2015 a maio de 2018. Foi Academic Visitor da Faculty of Classics da University of Oxford em 2016. Tem experiência na área de História Antiga, com ênfase em História de Roma e Antiguidade Tardia, atuando principalmente nos seguintes temas: História Agrária, Gália Tardo-romana, comunidades rurais, as revoltas rurais dos bagaudas e circunceliões, história vista de baixo. Atualmente tem trabalhado com Ensino de História Antiga e História Social do Colonato Romano sob a perspectiva da História Global.

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[1] Um manuscrito – agora perdido, mas que resultou na primeira edição impressa, em 1579 – atribuía o poema a um certo Santo Paulino (Brandes, 1888: 265-276; Evelyn-White, 1985: 295-296). Durante até o século XIX, se acreditou que o Poema tivesse sido escrito por Paulino de Nola. Esta associação na tradição manuscrita é possível de ser explicada pela proximidade deste com o poeta Ausônio, possivelmente, o avô do autor do Eucarístico. Ausônio foi Professor de Paulino de Nola e eles mantiveram uma duradoura troca de correspondências entre si (Isbell, 1974; Evelyn-White, 1985: xxiv-xxv). Nas compilações medievais de manuscritos que conservaram textos da Antiguidade, os de Paulino de Nola e de Ausônio foram, em alguns casos, editados juntos (Courcelle, 1947). No entanto a associação pode ser facilmente descartada devido às enormes discrepâncias entre a vida de Paulino de Nola – um rico proprietário de terras, profícuo escritor de poesias e cartas, que optou por doar suas posses à Igreja e entrar numa vida de ascetismo (Frend, 1969) – e aquela narrada no Eucarístico. Infelizmente, as tentativas de traçar o processo de sobrevivência de último manuscrito medieval do Eucarístico são dificílimas, senão impossíveis. O manuscrito que se encontra hoje em Berna já tinha sido separado de sua compilação original, quando estudado por Brandes, em fins do XIX (1888: 281-288), e assim se conserva até hoje.

[2] Uso neste artigo o texto em inglês da edição bilíngue de Hugh Evelyn-White (1985, vol.2,) o em espanhol de Raul Lavalle (2004) e a edição em latim preparada por Wilhelm Brandes (1888).

[3] (...) as Paulinus emerges from its 616 verses as one of the best known Gallic individuals of late antiquity.

[4] Ver as críticas de Moses Finley (1987) a tal atitude.

[5] Tradução do autor.

[6] Esta noção de composição estaria presente inclusive em sociedades nas quais a prática da poesia se realizava através da oralidade. Isto é, certos gêneros precedem à escrita, pelo menos no que diz respeito à Grécia Arcaica (Achcar, 1995: 22-28; Rossi, 197: 73).

[7] Para uma reconsideração da proposta de Courcelle, mais recentemente, conferir o artigo de Encuentra Ortega (2015).

[8] Eucharisticos, Praef. 1-2.

[9] Uma geração anterior, outra “autobiografia” em metros foi composta, porém, em grego e em iambos, por Gregório Nazianzeno. Não só os episódios narrados e o metro são outros, mas a estratégia de escrita é completamente diferente (McLynn, 1998)

[10] Tradução do autor.

[11] Tradução do autor.

[12] Tradução do autor

[13] “Quae postquam est expleta mihi firmavit et artus/ invalidos crescens vigor et mens conscia sensus/ adsuefacta usum didicit cognoscere rerum/ – quidquid iam [...] potui   meminisse, necesse est/ ipse fide propria de me agnoscenda retexam”. Tradução do autor.

[14] “Quae tamen haud etiam sensu agnoscenda tuentis/ subiacere mihi, sed post comperta relatu/ adsiduo illorum quibus haec tam nota fuere,/propositum servans operis subduenda putavi”. Tradução de Lavalle.

[15] Reconhecimento também realizado por Michael Roberts (Roberts, 2001), que não menciona Paulino neste contexto. Porém, quase todos os autores que Roberts insere nesta tradição épica da Antiguidade tardia são aqueles citados no Eucharisticos (Brandes, 1888: 315-316).

[16] Já que o hino latino era geralmente composto em dísticos elegíacos e o cristão, com métrica mais simples ainda (Gentili et alii, 1995, p. 482)

[17] Isso quer dizer, como aparece um pouco adiante, que não se reduziam ao ensino retórico.

[18] Tradução do autor.

[19] Nos trechos a seguir, utilizamos a tradução de Lavalle para o espanhol, que buscou recriar em sua língua os efeitos da métrica e do ritmo da poesia.

[20] “ut mihi pulcher equus falerisque ornatior esset,/ strator procerus, uelox canis et speciosus/ accipiter, Romana et nuper ab urbe petita/ aurata instrueret nostrum sphera concita ludum,/ cultior utque mihi uestis foret et noua saepe/ quaeque Arabi muris leni fragraret odore./ nec minus et uegetus ueloci currere uectus/semper equo gaudens (…)”.

[21] “ut mihi compta domus spatiosis aedibus esset/ et diuersa anni per tempora iugiter apta,/ mensa opulenta nitens, plures iuuenesque ministri/ inque usus uarios grata et numerosa supellex/ argentumque magis pretio quam pondere praestans/ et diuersae artis cito iussa explere periti/ artifices stabula et iumentis plena refectis,/ tune et carpentis euectio tuta decoris”.

[22] “vallanturque urbis pomeria milite Alano,/ acceptaque dataque fide certare parato/ pro nobis, nuper quos ipse obsederat hostis./ Mira urbis facies cuius magna undique muros/ turba indiscreti sexus circumdat inermis/ subiecta exterius; muris haerentia nostris/ agmina barbarica plaustris vallantur et armis”.

[23] Tradução do autor.

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