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Pasado Abierto - Año de inicio: 2015 - Periodicidad: 2 por año
https://fh.mdp.edu.ar/revistas/index.php/pasadoabierto - ISSN 2451-6961 (en línea)

Pasado Abierto. Revista del CEHis. Nº15. Mar del Plata. Enero-junio 2022.

ISSN Nº2451-6961. http://fh.mdp.edu.ar/revistas/index.php/pasadoabierto

                                                                           

A guerra das Malvinas/Falklands e o pensamento militar brasileiro:
em busca da autonomia e da dissuasão

Eduardo Munhoz Svartman

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil

eduardosvartman@gmail.com

Recibido:        04/09/2021

Aceptado:        21/03/2022

Resumen

O artigo aborda o impacto da guerra das Malvinas/Falklands no pensamento militar brasileiro. Analisa as percepções de militares brasileiros sobre diferentes aspectos do conflito publicadas em livros e periódicos profissionais, bem como recomendações feitas e seus desdobramentos em mudanças organizacionais. Argumenta-se que a guerra reforçou a estratégia de busca por autonomia e de instrumentos que dissuadissem a presença das grandes potências na região. Assim, apesar das restrições orçamentárias, os programas de produção doméstica armamentos foram mantidos e cada uma das forças promoveu reformas com vistas a incorporar algumas das lições extraídas da guerra. Paralelamente, foram adotadas iniciativas diplomáticas de concertação regional que criassem constrangimentos políticos a atuação de potências extrarregionais, como a Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul.

Palabras clave: Guerra das Malvinas, pensamento militar, estratégia, Brasil

La guerra de Malvinas/Falklands y el pensamiento militar brasileño:

en busca de autonomía y disuasión

Resumen

El artículo aborda el impacto de la guerra Malvinas/Falklands en el pensamiento militar brasileño. Analiza las percepciones del personal militar brasileño sobre diferentes aspectos del conflicto publicados en libros y revistas profesionales, así como las recomendaciones formuladas y sus consecuencias en los cambios organizativos. Se argumenta que la guerra reforzó la estrategia de búsqueda de autonomía e instrumentos para disuadir la presencia de las grandes potencias en la región. Así, a pesar de las limitaciones presupuestarias, se mantuvieron los programas nacionales de producción de armamento y cada una de las fuerzas llevó a cabo reformas destinadas a incorporar algunas de las lecciones aprendidas de la guerra. Al mismo tiempo, se adoptaron iniciativas diplomáticas de acuerdo regional para crear restricciones políticas a las acciones de poderes extrarregionales, como la Zona de Paz y Cooperación del Atlántico Sur.

Palabras claves: Guerra de Malvinas, pensamiento militar, estrategia, Brasil

The Malvinas/Falklands War and the Brazilian Military Thought: the quest for autonomy and deterrence

Abstract

The article addresses the impact of the Malvinas/Falklands war on Brazilian military thought. It analyzes the perceptions of Brazilian military personnel about different aspects of the conflict published in books and professional journals, it also inquiries about the recommendations made and their consequences in organizational changes. It is argued that the war reinforced the strategy of seeking autonomy and instruments to deter the presence of the great powers in the region. Thus, despite budgetary constraints, domestic armaments production programs were maintained and each of the forces carried out reforms aimed at incorporating some of the lessons learned from the war. At the same time, diplomatic initiatives of regional agreement were adopted to create political constraints on the actions of extra-regional powers, such as the South Atlantic Peace and Cooperation Zone.

Keywords: Falkland’s War, military thought, strategy, Brazil

A guerra das Malvinas/Falklands e o pensamento militar brasileiro:
em busca da autonomia e da dissuasão

Introdução

A Guerra das Malvinas/Falklands, ocorrida entre abril e junho de 1982, envolveu forças de mar, ar e terra da Argentina e do Reino Unido em um conflito armado limitado pela soberania do arquipélago. Suas repercussões, por sua vez, foram de grande magnitude para a derrocada da ditadura militar argentina e para a consolidação do governo conservador britânico. As vitórias diplomáticas de Londres nas Nações Unidas (Resolução 502), na Comunidade Econômica Europeia (sanções econômicas e embargo ao fornecimento de armas à Argentina) e junto aos Estados Unidos (que abandonou a posição de mediador e apoiou o Reino Unido na guerra) puseram em questão, especialmente para o Brasil, o sistema de segurança regional alicerçado no Tratado Interamericano de Assistência Recíproca, na Organização dos Estados Americanos e na já criticada dependência de Washington para a obtenção de armamentos modernos (Nunes e Svartman, 2019). Estes fatores orientaram a neutralidade do Brasil favorável à Argentina durante a guerra (Neto, 2006) e intensificaram a diplomacia brasileira de aproximação com Buenos Aires, assim como as posteriores iniciativas de cooperação e integração na América do Sul e no Atlântico Sul (Cervo e Bueno, 2015).

 No plano militar, as operações envolveram mísseis anti-navio e antiaéreos, submarinos convencionais e de propulsão nuclear, o confronto entre a aviação embarcada e baseada em terra, infantarias expedicionárias e esforços de mobilização e logística para enviar e manter homens e armas em um ambiente hostil e distante. O fato de a guerra ocorrer no Atlântico Sul, envolvendo país vizinho (com capacidades militares, na época, semelhantes às brasileiras) e uma potência central (cujas forças armadas eram a segunda referência para os militares brasileiros, atrás apenas dos Estados Unidos) também repercutiu nas percepções estratégicas do Brasil. O Exército Brasileiro que, à semelhança do argentino, também estivera mais envolvido com a política doméstica e a contra-insurgência do que com o preparo para um conflito convencional, acompanhou de perto o conflito e suas implicações. Segundo Campos e Alves (2012) a avaliação que o Estado Maior fez da Guerra das Malvinas/Falklands foi importante para a adoção de inovações em guerra eletrônica, emprego de helicópteros e criação de unidades especializadas “de pronto emprego”, formadas por soldados reengajados e não por recrutas. A Marinha do Brasil também esteve atenta ao conflito e às suas implicações políticas, estratégicas e operacionais de modo a reforçar sua aposta de tornar-se uma marinha de “águas azuis”, dotada de plataformas modernas, amparada na capacidade de produzir navios e sistemas de armas de elevada tecnologia (Svartman e Pivatto, 2021). Já a Força Aérea Brasileira (FAB), reiterou seus programas de produção doméstica de aeronaves de transporte, treinamento e ataque ao solo. Argumenta-se que a guerra das Malvinas/Falklands não produziu uma mudança substantiva no pensamento brasileiro, seu impacto se deu no sentido de reforçar opções estratégicas já em curso. Mesmo num cenário de restrições orçamentárias, consolidou-se a ideia de buscar maiores níveis de autonomia e produção doméstica dos meios de força a ser empregados. Também foram adotadas reformas organizacionais, limitadas, com vistas a incorporar novas práticas percebidas no conflito e incrementar a capacidade dissuasória do país num cenário de descrédito nos compromissos do sistema securitário regional.

Pensamento do militar é aqui entendido como sendo o conjunto das concepções dominantes do que sejam a guerra, a estratégia e a teoria militar (Gat, 2001) do Brasil no período aqui abordado. Não se trata apenas da estratégia e das doutrinas de emprego adotadas, disponíveis nos manuais das Forças Armadas. O pensamento militar envolve também concepções mais genéricas a respeito do sistema internacional, seus riscos e ameaças, e posição ocupada pelo país; do papel desempenhado pelas Forças Armadas na execução e na elaboração da política de defesa nacional e envolve, ainda, visões do que seja a guerra e de que tipo de força armada o país deve ter para evitá-la e ou vence-la.  

Este pensamento pode ser apreendido a partir da publicação de artigos e livros pela imprensa militar especializada e dos documentos oficiais que balizam a ação da Força em termos de estabelecer prioridades, recursos, definir programas e legitimar as escolhas feitas. Por sua vez, as publicações de militares que desempenham funções intelectuais em seu meio (no sentido de difundirem concepções estratégicas determinadas) consistem em elemento importante para alimentar, fundamentar e legitimar a confecção daqueles documentos, uma vez que no Brasil, até recentemente, documentos pertinentes à defesa nacional eram produzidos majoritariamente, quando não exclusivamente, por militares.

As noções que informam as formulações estratégicas, a identificação de oportunidades e ameaças, aliados e inimigos, o desenho das políticas delas decorrentes e, por fim, o perfil das forças armadas não são apenas corolários da estrutura do sistema internacional. Entende-se aqui que as formulações assumidas e as decisões tomadas partem de um quadro de percepções socialmente construídas que definem o que se entende por interesse nacional. Dessa forma, “os interesses nacionais são construções sociais criadas, (...) emergem das representações - ou, para empregar terminologia mais usual, descrições de situações e definições de problemas - através das quais agentes do estado e outros atores produzem sentido do mundo ao seu redor” (Weldes, 1996: 280).

Nesse sentido, considera-se aqui que o pensamento militar brasileiro, captado nas publicações daqueles que desempenham funções intelectuais no meio militar e nos documentos oficiais, opera no processo de construção ideacional dos chamados interesses nacionais do Brasil. Ou seja, do que e quem são seus aliados e parceiros e do que esperar de seus adversários, reais ou potenciais. Essa produção ideacional informou as concepções estratégicas adotadas pela Marinha e contribuiu para a construção de identidades e significados a respeito do papel, estrutura e doutrina desta Força. São formações discursivas que, no sentido dado por Hopf (2002), definem a estrutura social cognitiva dos atores.

As principais fontes empregadas para identificar como o pensamento militar foi impactado pela Guerra das Malvinas/Falklands foram livros publicados por militares brasileiros e os artigos publicados na Revista Marítima Brasileira (RMB), na revista A Defesa Nacional e na Revista da Universidade da Força Aérea, entre 1982 e 1992. A RMB é um periódico especializado em assuntos navais, publicado pela Marinha do Brasil desde 1851. A Defesa Nacional foi fundada em 1913 e é editada pelo Exército, já a Revista da UNIFA é editada desde 1985. Ao longo do tempo, esses periódicos profissionais passaram por modificações, no período aqui abordado, publicavam artigos de oficiais das forças a respeito de aspectos estratégicos, táticos e tecnológicos, análises de operações militares de diferentes períodos históricos, além de cartas e comentários de leitores. Frequentemente também publicavam artigos ou a transcrições de discursos e conferências de autoridades militares, conferindo certa conotação de veículo oficial. Ainda assim, os textos analisados são assinados pelos seus autores, o que, apesar das características da organização militar e do perfil das revistas e das editoras militares, confere certo espaço para a opinião e para visões em algum grau divergentes a respeito do conflito e de como a o Brasil poderia melhor se adequar às inovações militares e consequências estratégicas advindas da guerra. Assim, é possível compreender estes periódicos e livros como um espaço de circulação de ideias no âmbito das três Forças, também aberto à sociedade, que desempenha papel importante na promoção de consensos em torno das opções estratégicas das Forças Armadas e do país. É importante salientar que as publicações a respeito da Guerra das Malvinas/Falklands não tinham apenas uma motivação “científica” no sentido de investigar determinados aspectos do conflito, eles apresentavam recomendações claras de ações a serem tomadas ou evitadas no sentido de se “aprender as lições” do conflito. É também importante frisar que a atenção dada ao tema foi desigual entre os veículos das três Forças, havendo forte predomínio da Marinha. Contudo, o Exército e a Força Aérea também acompanharam o conflito e igualmente procuraram assimilar as lições aprendidas. De forma complementar, empregou-se também documentação produzida pela Presidência da República (Conselho de Segurança Nacional e Mensagens ao Congresso Nacional) para aferir em que medida as recomendações e prioridades conferidas pelos autores alinhavam-se com os programas e reformulações postos em prática no período.

Para tanto, o presente artigo está organizado da seguinte forma: esta introdução; uma seção que descreve o quadro conceitual e estratégico das políticas externa e de defesa nacional do Basil. Esta última, já engajada num processo de diversificação de fornecedores, modernização e busca por autonomia; uma seção dedicada à análise da produção ideacional publicada na imprensa profissional militar a respeito da Guerra das Malvinas/Falklands; uma avaliação de em que medida essa produção ideacional converteu-se em medidas práticas e, por fim, nas considerações finais.

Quadro conceitual e estratégico Brasileiro nas décadas de 1970 e 1980

O golpe militar de 1964 promoveu uma inflexão na política externa brasileira em favor do alinhamento com os Estados Unidos e conferiu ao anticomunismo papel central na política de defesa nacional. O primeiro governo da ditadura repudiou a chamada Política Externa Independente que até então vigorava, rompeu relações diplomáticas com Cuba e, em estreitou cooperação com os Estados Unidos da América (EUA), participando da ocupação da República Dominicana em 1965. Com um contingente de mais de mil soldados na Força Interamericana de Paz, o Brasil assumiu o comando da força sob mandato da OEA que deu sequência à intervenção unilateral dos Estados Unidos naquele país.

Ao longo da década de 1970, contudo, os sucessivos governos militares adotaram políticas mais pragmáticas e voltadas à busca de maiores margens de autonomia no setor externo (Silva e Svartman, 2014). Neste novo realinhamento, a política externa foi concebida para “suprir a sociedade e o Estado de condições e meios adequados a impulsionar o desenvolvimento de forma autônoma, na medida do possível” (Cervo e Bueno, 2015). A economia mais diversificada, que se industrializava e se expandia rapidamente, demandava novos mercados, tecnologias, insumos e parcerias. Num cenário internacional mais complexo, marcado por desafios como o choque do petróleo e oportunidades como a détente da Guerra Fria e a descolonização da África portuguesa, o Brasil redefiniu sua estratégia de modo a projetar-se internacionalmente de maneira mais autônoma. O conceito de autonomia aqui empregado consiste na “ability to independently and coherently determine national policies, to resist attempts at outside control, to adapt flexibly and exploit favourable trends in the international environment and to limit and control the effects of unfavourable ones” (Hurrel, 2013: 39).

Para Hurrell, a autonomia operou como uma espécie de meta e ideal norteador (guiding ideal) que fornecia o quadro intelectual básico da política externa e do projeto de desenvolvimento do Brasil do período. Essa busca por autonomia não deve ser confundida com uma eventual adesão “emocional” e “nacionalista” a projetos de grande magnitude (como o desenvolvimento de submarinos nucleares), conforme assinala Lima da Silva (2019). Embora tais projetos e a retórica ufanista estivessem presentes, a busca por autonomia é uma opção racional de ampliação da margem de manobra de um país que ocupa posição intermediária no sistema internacional. A política de defesa nacional possuía um arcabouço normativo (a doutrina de segurança nacional elaborada pela Escola Superior de Guerra) que pretendia dar unidade a essa busca por autonomia articulando “segurança” (obtenção de meios de força e repressão à contestação doméstica) e “desenvolvimento” (entendido como industrialização por substituição de importações). A versão brasileira da Doutrina de Segurança Nacional possuía várias vertentes que pretendiam contemplar os mais diferentes setores da vida pública: gestão pública, contra-insurgência, industrialização, ciência e tecnologia, telecomunicações etc. Assim, operava como elemento ideacional que informava e legitimava a ditadura e o papel político dos militares no regime por eles liderado.

Quando da eclosão da guerra das Malvinas/Falklands, a ditadura brasileira administrava o processo de transição para a democracia controlado pelos militares e estava em rota de aproximação com a Argentina como parte de sua estratégia de diversificação de mercados, eliminação de contenciosos e de concertação política no chamado “diálogo Norte-Sul”. Ao mesmo tempo, o regime enfrentava crescente oposição interna e a crise de seu modelo econômico, marcada pelo segundo choque do petróleo, contração do financiamento externo, inflação e decréscimo do PIB.

O anticomunismo era elemento central do regime e mobilizava recursos e pessoal nas três Forças e nas polícias por todo o país. No entanto, o preparo para uma guerra convencional (não apenas de contrainsurgência) nunca desaparecera por completo para os militares brasileiros, o que alimentava a demanda por sistemas de armas modernos. O padrão de aquisição até então vigente se dava através dos programas de transferência de armamentos estadunidenses nos termos da cooperação militar da Guerra Fria e eventuais compras de oportunidade. Esse modelo se tornou progressivamente frustrante para o regime o qual, além de competir pela primazia militar na região, pretendia que sua maior inserção internacional econômica e política também tivesse amparo militar. Os Estados Unidos da América, engajados externamente e cindidos internamente no Vietnã, limitaram a ajuda militar da América Latina à contrainsurgência e, ao longo dos anos 1970 e 1980, restringiram a venda de sistemas modernos à região. A política estadunidense de não-proliferação nuclear também colidiu com os programas brasileiros de pesquisa e desenvolvimento neste setor e as posteriores críticas às violações de direitos humanos cometidas pela ditadura brasileira contribuíram para o fim das relações militares especiais entre os dois países (Svartman, 2011).

A combinação destes elementos reforçou a diversificação de parceiras estratégicas e impulsionou a produção doméstica de sistemas de armas, padrão semelhante ao seguido pela África do Sul, Argentina e Israel (Neuman, 1984). Neste contexto, a recusa norte-americana em fornecer caças supersônicos fez com que o Brasil adquirisse aeronaves da França. Em 1969 foi fundada a Embraer, que teve entre suas primeiras encomendas os jatos de treinamento Xavante, fabricados sob licença da italiana Aermacchi para formar os futuros pilotos de caça brasileiros. No início da década de 1970 o Exército iniciou um programa de aquisições de blindados sobre rodas produzidos domesticamente e em 1975 foi criada a Indústria de Material Bélico do Brasil - IMBEL, empresa estatal vinculada ao Exército destinada inicialmente a fabricar fuzis sobre licença. Em 1970, o Brasil assinou acordo com o Reino Unido para adquirir fragatas modernas, duas delas construídas no Rio de Janeiro, e submarinos diesel-elétricos. As aquisições eram uma mudança estratégica importante, uma vez que a Marinha do Brasil deixava de ser apenas uma força subsidiária da norte-americana, especializada em guerra submarina, e se capacitava para a guerra de superfície e para operar mísseis e radares (Martins Filho, 2010). Essa modernização da Marinha estava em sintonia com a redefinição do Atlântico Sul como espaço estratégico para o Brasil, expresso no início da exploração de petróleo no mar em 1969 e no decreto que em 1970 expandia o mar territorial brasileiro de 12 para 200 milhas náuticas.

A maior redefinição se deu, por sua vez, no setor nuclear. Em 1974, em meio ao choque do petróleo e ao teste nuclear indiano, os EUA suspenderam o fornecimento de urânio enriquecido, que alimentava os reatores de pesquisa brasileiros adquiridos junto ao programa Átomos para a Paz. Isso acelerou as negociações com a República Federal Alemã para o estabelecimento de um amplo acordo que previa a construção de usinas nucleares no Brasil e transferência de tecnologia. Conforme Corrêa (2010), entre 1976 e 1978 a presidência da república passou a considerar a ideia de o programa nuclear brasileiro abrigar também o desenvolvimento de um submarino nuclear. A proposta encontrou ressonância na Marinha e em outros setores estatais diante da percepção de que “um submarino de propulsão nuclear lançaria o Brasil numa nova era de transformações científicas e tecnológicas e transformaria o status do Brasil no sistema internacional” (Corrêa, 2010: 56). No entanto, o programa enfrentou oposição de setores da sociedade brasileira e dos Estados Unidos da América, o que levou o governo a conduzi-lo secretamente. O incremento das capacidades convencionais, o programa nuclear e a definição de um espaço estratégico pretendiam elevar a postura dissuasória brasileira para além da retórica.

O conflito no Atlântico Sul ocorreu, portanto, em um momento delicado para o Brasil, no qual o regime pretendia avançar o projeto autonomista e industrializante em meio a um ambiente adverso economicamente e de baixa legitimidade política, uma vez que se tratava ainda de uma ditadura. A guerra entre um vizinho e uma potência central e suas implicações, não poderiam passar despercebidas pelas Forças Armadas brasileiras.

As “lições” da guerra das Malvinas/Falklands

Antes de abordar o conteúdo das análises publicadas, é importante salientar que todos os autores eram oficiais das Forças Armadas brasileiras e que, embora alguns textos tenham feito considerações às dimensões políticas e diplomáticas do conflito, as abordagens focaram prioritariamente seus aspectos táticos e estratégicos; além disso, evitavam tomar partido de qualquer dos beligerantes. As fontes empregadas nas análises, por sua vez, eram predominantemente britânicas, assim como o as narrativas, que seguiam basicamente as ações do país vitorioso. Quanto a isso, pode-se ponderar que seja frequente nos estudos instrumentais sobre campanhas militares, que buscam extrair “lições” da guerra, dar mais ênfase aos “acertos” do vencedor do que aos “erros” do perdedor. Além disso, os britânicos desde cedo disponibilizaram relatos e documentos sobre a guerra ao passo que os argentinos só deram publicidade ao “Informe Rattenbach” (minucioso relatório da comissão criada ainda em 1982 sobre o conflito) em 2012.

O problema da dependência e a busca por autonomia

Para os militares brasileiros, a Guerra das Malvinas/Falklands consistiu num importante observatório a respeito do caráter dos sistemas de alianças então vigentes e dos problemas decorrentes da dependência de fornecedores externos de material de defesa. De forma geral, assinalam a importância, para o Reino Unido, de pertencer a OTAN, o que teria contribuído para obter as vitórias diplomáticas junto a ONU, CEE e o apoio estadunidense (após o período em que Washington procurou mediar o conflito). Foi bastante enfatizado que o TIAR e a OEA tinham relevância menor para os Estados Unidos que sua aliança com o Reino Unidos, de modo que o “mito do panamanericanismo” teria sido destruído pelo conflito e que uma vez “espicaçada” a integração militar com Washington, o Brasil deveria buscar a “independência das superpotências”.[1] O referido posicionamento dos EUA em favor do Reino Unido e o embargo europeu imposto à Argentina reforçaram, por sua vez, as disposições em curso em favor da produção doméstica de armamentos no Brasil. Vários militares brasileiros assinalaram que a os níveis de dependência de importação de armamentos e munições por parte da Argentina limitaram suas capacidades logísticas e operacionais. Portanto, o Brasil deveria orientar o desenvolvimento de seu poderio militar, através de uma modernização menos dependente da importação de materiais de outros países. Para eles, a guerra revelara que a obtenção de novos e modernos sistemas de armas não poderia ser restrita à simples aquisição no mercado internacional: deveria passar por um processo de nacionalização do poder militar brasileiro, e a capacidade deste de responder as ameaças e riscos de similares conflitos.[2] 

Convêm destacar que tais recomendações em favor de maior independência na produção de armamentos não era desprovida da avaliação dos custos e dificuldades. Conforme Mark de Matos, oficial da FAB, a autossuficiência seria praticamente impossível, dada a interdependência no setor, e que dadas as pressões internacionais, “...o objetivo estratégico de maior independência não deve jamais ser esquecido, mesmo que para isso sejamos forçados a conviver com equipamentos mais caros e de menor desempenho que aqueles oferecidos por quem tem o maior interesse em nos manter fora da corrida para o desenvolvimento”.[3] 

Avaliação semelhante era partilhada pelos setores de inteligência que assessoravam o Conselho de Segurança Nacional. Em relatório de abril de 1982 a respeito do conflito ainda em curso, argumentava-se que países como Brasil “deverão dar maior ênfase à autonomia tecnológica e industrial em setores estratégicos, como a produção de material de emprego militar, setor energético (produção de combustíveis líquidos e propelentes em geral), setor nuclear e no campo das comunicações e informática”. No entendimento dos oficiais que elaboraram o documento, estes investimentos em defesa seriam um “fator de ativação do parque industrial brasileiro” e ajudariam a “promover o desenvolvimento tecnológico do país”.[4] 

Operações aeras e navais

Considerando que o Brasil iniciara o desenvolvimento de submarinos de propulsão nuclear, o seu emprego no conflito foi bastante discutido e apontado como decisivo em favor dos ingleses. Assim, enfatizou-se que a autonomia e velocidade do submarino nuclear de ataque britânico confinou a Armada Argentina aos seus portos desde o torpedeamento do Cruzador General Belgrano, feito pelo submarino de propulsão nuclear Conqueror.[5] A avaliação de que a negação do uso do mar teria desequilibrado o conflito em favor do Reino Unido reforçou os argumentos dos defensores brasileiros do desenvolvimento do submarino nuclear.

O emprego de mísseis variados (anti-navio, terra-ar, ar-ar), de instrumentos de guerra eletrônica e suas consequências para a conduta da guerra foi uma novidade seguida com atenção pelos oficiais brasileiros. O desempenho dos mísseis anti-navio de fabricação francesa Exocet, responsáveis pelo afundamento de um destroier e um porta-aviões (improvisado) britânicos, foi percebido como a prova em combate dessas novas tecnologias. Para Mark de Matos, o “emprego pelos argentinos de mísseis ar-superfície proporcionou não só um excelente índice de acertos, como também um alto grau de sobrevivência, já que nenhuma dessas aeronaves foi atingida durante a guerra”.[6] Numa perspectiva mais ampla, os mísseis e a guerra eletrônica transformariam a guerra no mar, pois a

“introdução de armas com sistemas precisos de guiagem [tirou] a ênfase do volume de fogo para a precisão; (...) o desenvolvimento da eletrônica nas áreas de detecção, localização, defesa e comando e controle; [e] a gradual, mas contínua, diminuição da importância dada à couraça, à compartimentação e à redundância de sistemas no projeto dos navios”.[7]

A atuação da aviação de ataque argentina, seja com mísseis anti-navio, seja com bombas, mostrou os limites da capacidade de defesa antiaérea e de resiliência dos navios britânicos: duas fragatas, um contratorpedeiro e dois navios de desembarque britânicos foram destruídos ou severamente danificados pelos bombardeios argentinos. Para Matos, o emprego de radares e mísseis antiaéreos garantiram à Força Aérea Argentina o controle[8] do espaço aéreo durante a guerra. Em função disso, na avaliação de Vidigal no artigo acima referido, quaisquer forças navais de superfície deveriam ter um sistema de defesa aérea (abrangendo aviões de combate, mísseis superfície-ar de diferentes alcances e canhões) perfeitamente integrado e capaz de enfrentar um inimigo dotado de modernas armas como mísseis ar-superfície e bombas inteligentes. A construção naval, também, deveria ser revista conforme as novas necessidades de sobrevivência dos navios após serem atacados, não devendo ser utilizados: materiais de baixo ponto de fusão e materiais que ao queimarem expeliam fumaça tóxica, como os empregados recentemente pelos britânicos. Estas observações são de particular relevância porque naquele momento os navios mais modernos da Marinha do Brasil eram justamente as fragatas de construção inglesa, recentemente comissionadas.

O desenvolvimento de técnicas de guerra eletrônica foi apontado como prioridade que deveria ser adotada pela Marinha do Brasil,[9] havendo a necessidade de pesquisas voltadas para a produção de radares mais sofisticados e também pela FAB, que deveria adquirir aeronaves de alerta antecipado para a dupla função de coordenar o tráfego aéreo amigo e de interceptação do inimigo.[10] 

Se os submarinos nucleares foram vistos como decisivos para o estabelecimento do domínio do mar (e o consequente isolamento das forças em terra), os porta-aviões, ou navios aeródromos, continuariam sendo percebidos como importantes, uma vez que possibilitariam o domínio do ar e a projeção de poder sobre terra e mar. De forma geral, os oficiais da Marinha sustentaram a importância de esquadras nucleadas em torno dos porta-aviões, uma vez que suas aeronaves poderiam ser empregadas para alerta antecipado, proteção de linhas logísticas, interceptação e apoio aéreo a operações anfíbias com maior alcance e flexibilidade que a aviação baseada em terra. Sua proteção, contudo, dependeria da disponibilidade de submarinos nucleares, o que, somado às limitações do porta-aviões argentino, tornou essa plataforma do país vencido particularmente vulnerável. Observou-se que os caças britânicos embarcados em seus porta-aviões eram dotados de mísseis ar-ar capazes de impor severas baixas à aviação argentina baseada em terra. Assim, o conflito das Falklands/Malvinas reafirmaria a importância dos navios-aeródromo, o que teria induzido os britânicos a suspender a venda do Invincible e a baixa do Hermes, de forma a manter três navios-aeródromo, dois em condições operativas e um em reparos.[11] A capacidade destes navios de acomodar helicópteros de grande porte e caças de decolagem vertical, mesmo em plataformas improvisadas, como o cargueiro Atlantic Conveyor, foi entendida pelos articulistas como fundamental para que os britânicos desembarcassem as tropas de infantaria necessárias para a retomada das ilhas.

Operações terrestres

As operações de desembarque foram elemento de destaque no conflito, tanto na tomada das ilhas pelos argentinos quanto na retomada britânica. Porém, o objeto de interesse dos analistas brasileiros recaiu basicamente sobre as operações conduzidas pela Royal Navy e pelo Royal Army. Foi dada grande importância ao emprego de helicópteros nas operações de reconhecimento e de desembarque, assim como a capacidade britânica de realizar operações durante a noite, uma vez que a aviação de ataque argentina não tinha condições de conduzir operações noturnas. Neste quesito, vários militares brasileiros recomendaram a aquisição de óculos de visão noturna para as diferentes forças (então uma novidade) e o emprego de helicópteros de forma sistêmica pelo exército, o que terá implicações organizacionais mais substantivas que serão abordadas na próxima seção. No âmbito da Marinha, a apreciação das operações terrestres ensejou a recomendação de criação de uma força anfíbia permanente capaz de conduzir não apenas desembarques, mas de efetuar assaltos anfíbios.[12] 

Os combates em terra mostraram duas concepções distintas de força armada. A Argentina ocupou o arquipélago com um numeroso contingente de soldados cuja maioria era de recrutas detentores apenas do treinamento básico proveniente do serviço militar obrigatório. As forças britânicas, por sua vez, eram compostas de voluntários que escolheram a profissão das armas. Essa diferença foi particularmente importante porque o contingente britânico, em posição ofensiva, era numericamente inferior ao argentino, que estava em posição defensiva. O que contrariava os manuais de tática que recomendavam que as forças ofensivas fossem três vezes mais numerosas que as defensivas. Embora se tenha dado ênfase a tópicos como armamento, equipamentos e as tecnologias neles embutidas, essa diferença organizacional foi abordada em várias análises, de modo que, para os oficiais brasileiros, uma das lições do conflito foi a necessidade de se desenvolver pessoal altamente especializado e preparado para a realização de operações especiais.[13] Consequentemente, o modelo brasileiro de recrutamento baseado no serviço militar obrigatório foi objeto de um modesto e conservador debate. Luis Paulo Carvalho, para quem o emprego de mísseis inaugurava uma nova era na guerra, recomendou uma revisão da legislação e da instrução do serviço militar, ainda que destacasse que uma força totalmente profissional seria inviável por prejudicar a formação de reservas e por implicar no envelhecimento dos quadros da força.[14] Basto, por sua vez foi enfático ao afirmar que um “exército de profissionais” seria oneroso para um país com as dimensões do Brasil e inviável para países em desenvolvimento.[15] Apreciações como estas ajudam a compreender por que não houve propostas de reforma do modelo de recrutamento militar no Brasil.

A capacidade do Reino Unido organizar uma força tarefa envolvendo marinha, exército e força aérea capaz de atuar de forma rápida, coordenada e eficaz na retomada das ilhas não passou desapercebida pelos militares brasileiros. Como as forças armadas argentinas possuíam capacidades e um padrão operacional similar às brasileiras, marcados por forças singulares pouco afeitas a atuar em conjunto, a avaliação era que a guerra “...evidenciou a inexistência de uma doutrina conjunta. Ao contrário dos ingleses, que atuaram de forma estritamente coordenada, os comandantes argentinos pareciam supor que a guerra era exclusiva da sua respectiva Força”.[16] 

De acordo com o oficial do Exército que produziu uma das análises operacionais mais rigorosas encontradas na imprensa militar brasileira do período,

“O ensinamento mais importante deixado pela Guerra das Malvinas é o relacionado ao emprego conjunto das Forças Armadas, constituindo um sistema único, integrado e coordenado. Essa capacidade só é alcançada através da formação do hábito para o trabalho em conjunto, mediante um exercício continuado. Consolidar estratégias, condutas e procedimentos em trabalho conjunto das Forças Armadas, um importante tema para reflexão”.[17] 

Mobilização e logística

A literatura especializada frequentemente salienta a capacidade do Reino Unido enviar a força expedicionária e manter a linha de suprimentos por ar e mar que se estendia por milhares de quilômetros entre o Atlântico Norte e o Sul. Essa capacidade era formada tanto pelo grau de disponibilidade e prontidão de suas forças armadas quanto pela possibilidade de mobilizar recursos da marinha mercante, estaleiros, portos, aeroportos e demais sistemas logísticos civis. A mobilização foi, então, um dos pontos que mais chamou a atenção dos militares brasileiros.

Várias análises brasileiras reportaram a efetividade com que o sistema de mobilização britânico requisitou e adaptou navios mercantes ou de passageiros para o emprego na guerra.[18] Era consenso entre os militares brasileiros que a rápida mobilização do Reino Unido contou com uma importante infraestrutura apoiada em indústrias e tecnologias nacionais, permitindo que o acesso a armamentos, munições, equipamentos, peças de reposição e manutenção não dependesse de fornecedores externos, limitação esta enfrentada pela Argentina. Essas avaliações destacavam que marinha mercante brasileira poderia ser adaptada e capacitada para o emprego contra possíveis ameaças e conflitos. Em função disso, recomendavam que se desenhassem instrumentos de planejamento e mobilização à semelhança daqueles empregados pelos britânicos na guerra das Malvinas/Falklands. De forma similar, o emprego de aeronaves civis pelos argentinos também chamou a atenção dos analistas brasileiros (Santos, 1989), o que também reiterava o caráter multifunção da FAB, que era, a um só tempo, força combatente, controladora do tráfego aéreo brasileiro, agência reguladora e administradora de aeroportos.

Das ideias às práticas: avaliando o impacto nas Forças Armadas

A busca por maiores níveis autonomia na produção de armamentos e sistemas consolidou-se como um componente importante do pensamento militar e da estratégia do Brasil. Conforme referido anteriormente, a Marinha já atuava nesse sentido ao construir em seu arsenal duas das fragatas adquiridas no Reino Unido. A percepção das dificuldades argentinas diante do embargo imposto pelos principais fornecedores de armamentos do país estava em sintonia com a criação, ainda em 1982, da Empresa Gerencial de Projetos Navais, a EMGEPRON. Conforme a Mensagem ao Congresso Nacional de 1983, tratava-se de empresa pública vinculada ao Ministério da Marinha destinada a gerir programas que permitissem ampliar a nacionalização do material empregado pela Força. Em 1984 a Marinha iniciou o programa de desenvolvimento e produção nacional de corvetas e assinou um acordo com a República Federal Alemã para a aquisição de um submarino diesel-elétrico e para a produção licenciada de mais três da mesma classe no Brasil.

Em 1983 o Ministério da Aeronáutica definiu a “nacionalização da produção dos meios incentivando a indústria, particularmente de armamento aéreo e de componentes” como um dos seus objetivos. Para tanto, a FAB implementou vários programas de desenvolvimento tecnológico nos setores de foguetes (para um futuro lançador de satélites), mísseis, giroscópios, fibra de carbono, turbinas de pequeno porte e biodiesel, os quais se articulariam com empresas estatais e privadas brasileiras e complementariam os programas já em curso de fabricação de aeronaves sob licença e de desenvolvimento de aeronaves novas[19] (Mensagem, 1984). Neste segmento, o aporte de recursos e encomendas à Embraer (à época uma empresa estatal) foi fundamental para a produção doméstica de aeronaves comerciais e de aeronaves militares como o treinador avançado Tucano e o caça-bombardeiro AMX, este desenvolvido em parceria com a Itália.

No âmbito do Exército, após a guerra das Malvinas/Falklands, foi definido como objetivo alcançar a “progressiva autossuficiência no setor de material bélico, [de modo a] reduzir, ao mínimo possível, as importações, fazendo com que as encomendas recaíssem, na sua maioria, na indústria nacional, propiciando, além da economia de divisas, o estímulo à pesquisa e o correspondente desenvolvimento tecnológico”.[20]

  Assim, os programas em curso de fabricação doméstica de blindados, armas leves e munições foram complementados também com programas que visavam a fabricação autóctone de equipamentos de rádio, de guerra eletrônica, de mísseis superfície-superfície e equipamentos de visão noturna.[21] A envergadura destes programas sofreu com as restrições orçamentárias decorrentes da crise da dívida externa dos anos 1980 e com a retração dos investimentos públicos nos anos 1990. No entanto, apesar dos atrasos e redimensionamentos, vários programas foram concluídos e as Forças Armadas brasileiras incorporaram boa parte desses sistemas.

O programa nuclear brasileiro, destinado a pesquisa e geração de energia, ganhou impulso extra neste ambiente de degradação dos laços com os Estados Unidos e de relativo consenso em torno da necessidade de desenvolver capacidades autônomas no Brasil.   A sua versão militar, e secreta, também avançou em decorrência das avaliações feitas a respeito do papel do submarino nuclear britânico na guerra das Malvinas/Falklands. O desafio de desenvolver um submarino nuclear envolvia uma forte conotação política, uma vez que nenhuma potência detentora dessa tecnologia estava disposta a cooperar. Pelo contrário, os regimes de regulação do emprego da energia nuclear e de não proliferação de armas nucleares que estavam em construção desde o final dos anos 1960 eram bastante restritivos nesse sentido. Diante dos desafios políticos e de engenharia, o programa secreto focou, então, no desenvolvimento de duas tecnologias prévias à construção do submarino propriamente dito: o processo de enriquecimento de urânio necessário à produção do combustível nuclear e o desenvolvimento do reator para ser alojado no submarino. O programa sofreu com problemas de financiamento tanto no regime militar quanto após a democratização, além disso, padecia também de falta de consenso na própria Marinha, havendo setores contrários ao deslocamento de significativos recursos de custeio e operação da frota para o projeto, o que alimentava conflitos no interior da Força (Martins Filho, 2011).

Em termos organizacionais, as percepções colhidas na guerra trouxeram algumas modificações, embora não tenham ensejado mudanças mais profundas. O Exército implementou em 1986 o plano Força Terrestre-90, introduzindo o emprego orgânico de helicópteros (até então o Exército dependia de meios da FAB), unidades de guerra eletrônica, “Brigadas de Pronta Resposta” e unidades de paraquedistas e de forças especiais (Campos e Alves, 2012). Estas unidades passaram a ser compostas com pessoal reengajado e não com recrutas, de modo a atingir um padrão de desempenho mais próximo do observado nas forças profissionais britânicas. A Marinha de fato aparelhou sua força de fuzileiros, adquirindo veículos anfíbios e de desembarque e criando o Grupamento de Embarcações de Desembarque.[22] A avaliação da importância dos porta-aviões no conflito manteve a Marinha afeita ao modelo de estruturação da esquadra em torno de um navio aeródromo, contudo somente passou a empregar aeronaves a jato de ataque na década seguinte e somente dispôs de um navio aeródromo capaz de embarcar essas aeronaves, de forma intermitente, entre 2001 e 2018. A principal mudança organizacional na FAB foi a incorporação dos caça-bombardeiros AMX em 1989. Desenvolvida e fabricada em parceria com a Itália, essa aeronave permitiu que a Força Aérea começasse a dominar novas tecnologias de eletrônica embarcada e, por participar do seu desenvolvimento, dos processos de integração de sistemas, análise operacional e de desenvolvimento próprio de táticas de emprego (Almeida, 2008). Assim como o AMX e o já referido Xavante, o novo avião de treinamento desenvolvido pela Embraer, o Tucano, integrava o objetivo de nacionalização da produção dos meios, do armamento aéreo e seus componentes.[23]

Com relação ao tópico mobilização e emprego da marinha mercante no suporte logístico, parece que as “lições” extraídas da guerra foram convertidas em medidas concretas. Em 1984 foi publicado o Decreto N° 89331 que instituía a Política Marítima Nacional, a qual tinha por finalidade orientar o desenvolvimento das atividades marítimas do país, de forma integrada e harmônica, além de sintonizada com as políticas de desenvolvimento e de segurança. Deveria articular, portanto, diferentes ministérios. Dentre suas múltiplas ações previstas, destinava-se a “Planejar a mobilização marítima em tempo de paz, inclusive estabelecendo normas a serem cumpridas para a construção de navios mercantes selecionados, adequando-os a uma rápida transformação para emprego militar”.[24]

A implementação e efetividade dessa política ainda está para ser investigada. Contudo, a retração da indústria naval brasileira nos anos 1990 sugere que, ao menos no que diz respeito à ação acima referida, pouco tenha se concretizado.

A capacidade de as forças armadas operarem de forma conjunta foi considerada uma das principais lições da guerra no Atlântico Sul. Nesse sentido, algumas iniciativas foram tomadas para romper a longa tradição de insulamento e competição entre as forças armadas brasileiras, com destaque para os estudos do Estado Maior das Forças Armadas visando a criação do “Manual de Comando Combinado e Conjunto” em 1983, a realização de exercícios esporádicos envolvendo mais de uma força e a realização em 1989 de um grande exercício de simulação de guerra em ambiente amazônico envolvendo as três forças, a “Operação Guavira” (Mensagens, 1984 e 1990). Tais iniciativas, contudo, ainda não se desdobraram em reformas organizacionais nem educacionais que preparassem sistematicamente os militares brasileiros para atuar conjuntamente.

Considerações finais

A guerra das Malvinas/Falklands não produziu uma mudança substantiva no pensamento militar brasileiro, a análise aqui apresentada permite afirmar que seu impacto consistiu em reforçar opções estratégicas já em curso no sentido de constituir forças armadas bem equipadas e amparadas na capacidade nacional de produzir equipamentos e sistemas de armas complexos para dissuadir potenciais inimigos. Dessa forma, mesmo num cenário de crise econômica e restrições orçamentárias, já estava consolidada a ideia de buscar maiores níveis de autonomia e produção doméstica dos meios de força a ser empregados. O desenvolvimento de blindados, aeronaves, navios e o domínio de tecnologias como a nuclear, de guerra eletrônica e de mísseis eram percebidos como alternativa às restrições internacionais e riscos trazidos pela “excessiva” dependência de fornecedores externos. Por seu turno, essa busca por autonomia não implicou em autarquia, uma vez que o recurso a compras de oportunidade e a acordos de cooperação tem sido frequente desde então.

É importante notar que a ênfase na busca por capacidades autônomas (ou domésticas) de armamentos e tecnologias de emprego militar enfrentou sérias dificuldades a partir da segunda metade dos anos 1980. Ao aprofundamento da crise da dívida externa e à limitação da capacidade de investimento estatal, somaram-se as mudanças no panorama estratégico. A aproximação diplomática entre Brasil e Argentina e as transições para a democracia em ambos os países tornaram mais remotas as hipóteses de um conflito interestatal na região. Portanto, era cada vez mais difícil sustentar investimentos de grande monta na pesquisa e desenvolvimento de sistemas de armas complexos. O fim da Guerra Fria trouxe também a diminuição geral do gasto com defesa e uma mudança brusca no mercado internacional de armamentos, uma vez que vários países trataram de se desfazer de parte de seus arsenais, elevando assim a oferta de sistemas de armas relativamente modernos e fazendo com que a opção de compras de oportunidade se tornasse mais atrativa que os processos de desenvolvimento, especialmente entre países em desenvolvimento. Paralelamente, o investimento da diplomacia brasileira em consolidar ou criar espaços de concertação regional (ABACC, Mercosul), regimes internacionais (UNCLOS) ou mecanismos que implicassem em algum custo político a atuação de potências extra-regionais (ZOPACAS) mostrou-se como uma alternativa a compensar a perda de impulso nos investimentos em defesa do pós-Guerra Fria.[25]

Depois de um longo período de latência, projetos de produção doméstica de sistemas de armas foram novamente adotados ou reativados (no caso do submarino nuclear) a partir da publicação da Estratégia Nacional de Defesa em 2008. A publicação deste documento e a implantação de novos programas de aquisição para as forças armadas parece revelar que, depois de quatro décadas, o pensamento militar brasileiro reteve como principal lição da guerra das Malvinas a necessidade produzir sistemas de armas e dominar tecnologias a eles conexas.

Bibliografia

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Eduardo Munhoz Svartman es Doctor en Ciencias Políticas, Licenciado y Magíster en Historia. Es profesor de la Universidad Federal de Rio Grande do Sul y presidente de la Asociación Brasileña de Estudios de Defensa, ABED. Actualmente investiga el pensamiento militar brasileño y sus implicaciones políticas, organizativas y estratégicas. También investiga las implicaciones organizativas y estratégicas del Sistema de Misiles y Cohetes de Artillería Astros del Ejército Brasileño.

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[1] Fregapani, Gélio (1985). As guerras da Coréia, do Vietnã e das Malvinas e a proliferação nuclear. A Defesa Nacional, N° 729, p. 99.

[2] Flores, Mário César (1982). Malvinas: uma primeira abordagem. Revista Marítima Brasileira, abril/junho, pp. 59-70; Mello, Nilson (2013). O conflito das Malvinas e seus ensinamentos. A Defesa Nacional, N° 822. (Republicado); Carvalho, Luis P. (1983). O Conflito das Falklands e seus reflexos. A Defesa Nacional, N° 709.

[3] Matos, Mark (1989). Análise das guerras contemporâneas. Revista da UNIFA, Vol. 5, N° 6, p. 49.

[4] Arquivo Nacional, Fundo Conselho de Segurança Nacional, Relatório de inteligência. Código de identificação: BR DFANBSB N8.0.PSN, EST.103. Importante salientar que o setor de inteligência brasileiro, coordenado pelo Sistema Nacional de Informações, órgão com status ministerial, era controlado e majoritariamente formado por militares.

[5] Vidigal, Armando (1984). Conflito no Atlântico Sul. Revista Marítima Brasileira, outubro/dezembro, pp. 3-29.

[6] Matos, Mark (1989). Análise das guerras contemporâneas. Revista da UNIFA, Vol. 5, N° 6, p. 51.

[7] Vidigal, Armando (1985a). Conflito no Atlântico Sul. Revista Marítima Brasileira, janeiro/março, p. 27.

[8] Provavelmente o autor se refere à capacidade de detectar e identificar alvos, uma vez que nenhum dos contendores assegurou efetivo comando do ar durante a guerra.

[9] Silveira, Fernando Malburg da (1983). Defesa aeroespacial de forças navais. Revista Marítima Brasileira, outubro/dezembro, p. 44.

[10] Matos, Mark (1989). Análise das guerras contemporâneas. Revista da UNIFA, Vol. 5, N° 6, p. 51.

[11] Vidigal, Armando (1985b). Conflito no Atlântico Sul. Revista Marítima Brasileira, abril/junho, p. 7.

[12] Martins, Umberto Barbosa Lima (1984). A Guerra das Malvinas: um ponto de vista anfíbio. Revista Marítima Brasileira, outubro/dezembro, pp. 47-62.

[13] Vidigal, Armando (1985a). Conflito no Atlântico Sul. Revista Marítima Brasileira, janeiro/março, p. 27.

[14] Carvalho, Luis. P. (1983). O Conflito das Falklands e seus reflexos. A Defesa Nacional, N° 709.

[15] Basto, Theo (1984). Malvinas, uma Guerra para Reflexão. A Defesa Nacional, N° 712.

[16] Santos, Murilo (1989). Evolução do poder aéreo. Rio de Janeiro: INCAER/Itatiaia.

[17] Basto, Theo (1984). Malvinas, uma Guerra para Reflexão. A Defesa Nacional, N° 712. p.106.

[18] Fayad, Roberto Agnese (1986). A mobilização do Reino Unido no conflito das Malvinas. Revista Marítima Brasileira, 2º trimestre, p 114.

[19] República Federativa do Brasil (1984). Mensagem Presidencial. Brasília: Impresna Nacional.

[20] República Federativa do Brasil (1983). Mensagem Presidencial. Brasília: Impresna Nacional.

[21] República Federativa do Brasil (1989). Mensagem Presidencial. Brasília: Impresna Nacional.

[22] República Federativa do Brasil (1984). Mensagem Presidencial. Brasília: Impresna Nacional.

[23] República Federativa do Brasil (1985). Mensagem Presidencial. Brasília: Impresna Nacional..

[24] República Federativa do Brasil (1984) Decreto Nº 89.331, 25 de janeiro de 1984. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1980-1989/d89331.htm. Último acesso: 06/04/2022.

[25] A Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares (ABACC) foi criada em 1991 para estabelecer salvaguardas nucleares entre os dois países e é referido pela diplomacia brasileira como instrumento de transparência e compromisso com o uso pacífico da energia nuclear. O Mercado Comum do Sul (Mercosul), também foi criado em 1991. Embora seja um bloco econômico, é também um instrumento de negociação política com atores de outras regiões. A Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, em inglês United Nations Convention on the Law of the Sea (UNCLOS), assinada em 1982, é um tratado multilateral que define as regras de exploração dos recursos naturais no mar. A Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (ZOPACAS) é uma organização criada pela Assembleia das Nações Unidas em 1986 destinada a promover a cooperação na região e a evitar a proliferação de armas nucleares e a presença militar de atores extrarregionais.

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